21 março, 2010

Rita Grácio*




portugal


a partir Portugal de Jorge Sousa Braga



portugal
eu tenho vinte e quatro anos e tu fazes-me sentir
como se fosse nova demais para ti, embora me lembres que estou a caminhos dos trinta.
que culpa tenho eu
que as únicas mulheres da história portuguesa em fascículos
eram uma padeira que nunca existiu e umas quantas rainhas loucas, mães e megeras
só porque escolheste um treçolho na ponta do dedo indicador?

não imaginas como nem sequer fico húmida quando ouço o hino nacional
não estou virada p’ra te levantar o esplendor
(decerto as minhas egrégias avós me compreendem)

ontem fui às compras com a Maga Patalógika
- a vida está cara
a cara com o mal
é o que dá dar
a outra face –
e ela em vez de me dar uma poção, a querer convencer-me que com um ben-u-ron tudo passa
até esta hemorragia de lágrimas e pétalas em salga
esta mucosidade lusa a escorrer pelo atlântico e a acender lusos


portugal
um dia fechei-me no parlamento a ver se te compreendia
mas a única coisa que apanhei
foi uma otite

olha, portugal
eu quero lá saber da nação! – mas levo-te sempre no bolso para ver as horas a transformar-me no Coelho Branco
olha, portugal
eu quero lá saber da nação! – mas pelo sim pelo não
vou votando quando não faço aviões de papel

portugal, estás a ouvir-me?
eu sei que não. as mulheres falam de mais, não é? olha só este poema que já vai em duas páginas

portugal
eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
cheguei tarde de mais para a festa dos cravos
mas ainda assim
puseram-me um prato na mesa
- estou agora a almoçar
faltam talheres, copo, guardanapo e companhia – nada de ressentimentos
ainda tenho a mão que me sobrou de escrever uma guerra nunca contada
faltam as barrigas de freira para a sobremesa que não devem tardar
- eles dizem que este banquete será sempre bom demais para mim
esquecem-se que somos nós que levantamos a mesa e lavamos a louça e tentamos aquecer
os restos
no micro-ondas


eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
a venezuelana Astrid Carolina Herrera Irrazábal é eleita Miss Mundo – nada de ressentimentos

eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
mário soares estava no poder e segue-se-lhe cavaco silva – nada de ressentimentos
à parte o facto de em dois mil e seis voltarem os bonecos bolorentos de uma colecção antiga às vitrinas presidenciais

olha, portugal
começo a ficar deveras ressentida!

portugal,
vou propor-te dois projectos eminentemente nacionais – porque está visto que um só não chega
que bebas um litro e meio d’água por dia, andes meia hora a pé e durmas as oito horas
e que vamos todos e todas
aprender renda de bilros

portugal
gostava de vestir-me de ti
se numa noite de inverno

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*Rita Grácio nasceu em 1984. No mesmo ano aconteceram uma série de coisas. Talvez por isso escreva poemas. O que é certo é que é fã de Mário Cesariny no facebook. E entretanto foi publicando poemas na Sulscrito e na Big-Ode e, sobretudo, na Oficina de Poesia, nome de revista e grupo de intervenção (coordenado por Graça Capinha), que é sua terra-natal desde 2003. De 2005 a 2010 foi membro do Conselho de Redacção desta revista, onde co-exerceu (com mais 6 vozes) a sua “justiça poética” (que está sempre em exercício, by daí). Em 2007 deu-lhe para co-fundar o blog-grupo experimental “aranhiças & elefantes”. Entretanto, deixou no prelo o ´-ES-TU-QUE. Em academês, Rita Grácio é Mestre em Sociologia, tendo já sacado uma licenciatura na mesma área, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Até agora tem acordado de manhã para ir trabalhar como investigadora júnior no Centro de Estudos Sociais, no projecto “Novas Poéticas de Resistência: o século XXI em Portugal”.