21 março, 2010

Maria Toscano*







Dona Senhora, Dama, Rainha Magna




Dona Senhora, estranha e estrangeira
aqui poiso o meu gesto de consolo
devidamente como, Dona Senhora,
mereceis.

venho aqui poisar o meu gesto de consolo
venho aqui depor o meu poema de gratidão.

extemporâneo na geração, fora de época
nesta plena temporada dos carnavais
devidamente
como, Dona, como, Senhora,
devidamente, como mereceis.

as sílabas limo com cuidado

aprumo palavra após palavra

lustro o fio insinuado por cada verso

acolho seriamente o que se esboça
em palavra e espaço
em verso feito à mão
para, aconchegadamente,
o trazer ante vós
Dona Senhora, devidamente, ante vós.

no centro do mosteiro
baixo a voz
com que articulo
a mais antiga oração.
no centro do sagrado
espaço em tempo
do balbuciar reduzo o hábito veloz.
no centro deste centro

Alcobaça, magna e baça

centro-me na minha forma limitada
para, assim, me unir agigantar
com as almas fundadoras
e, assim,
aceder, em breve sílaba, ao templo são.

Dona Senhora
em temporada dos carnavais
o brilho que possa dedicar-vos
vos toca
pois noutros tempos
conhecestes as mesmas farsas,
mesma a violentação.

Dona Senhora
nem estranha nem estrangeira
Magna Dama
dos desencontros e da paixão
sã protectora entre aguilhões
e invernia
pelos corredores

onde sempre a maldade avance.

sã protectora e
oráculo das amadas
aceita, por esta vez, esta palavra
aceita-a. possa eu ser tua falante
e possas, tu, ser, Senhora Dama
atenta ouvinte atenta
a mediadora
a mediadora da roda-luz da visão.

Dona Senhora
terrena como sagrada
profana como vestal anunciada
Dama e Rainha
pelos Poetas desejada
possas ser, tu,
Dona, Senhora e Dama
agraciada pela voz solidária de nós todas
pela fala franca redonda aberta e branca
daquelas — porque amantes, porque mulheres
antes do tempo das farsas vis
já te eram irmãs.

a ti, Bela
endereço o meu verso

a ti, o verso, um sorriso
doce
e outro sorriso
meio nostálgico
triste.

a ti, Bela
Rainha da resistência
do persistir intacta
entre inimigos por inveja
a ti, Bela Mulher,
este poema irmão.

Dona Senhora
dos tempos das farsas vis
temos a lamentar
o insano imparável crescente
temos a testemunhar
a brutal vacuidade reinante
temos a denunciar
a escandalosa lei
ainda vigente, melhor,
agora escorada
na regra-mor da maldição: ter coração.

Dona Senhora
Dama
Rainha Bela
nossa natural irmã na redenção
nem estranha nem estrangeira
como nós
as da pele suor e sal guardadoras
como nós,
as do gesto da pausa e ritmo cicerones
como nós,
as afinadoras de tons e sibilos suaves

como nós,
as mestras da precisão de linha e linhos
como nós,
as provadoras de caldos molhos e fomes
como nós,
as amassadoras do dia com noite e medos
como nós,
as veteranas do berço do abraço e do prazer
como nós, vos chamo,
sobrevivente pelos corredores
por onde sempre a maldade avance
Magna Dama,
como nós,
viventes de amores e de paixões.

a ti, Bela,
endereço esta palavra
fiada, limada, lustrada
ao colo aconchegada até teu consentimento.

a ti, Bela,
Dona e Rainha
Senhora e Dama
reitero requeiro e invoco
— por nossa fala branca
......redonda
......aberta e branca —
tua presença iluminada
lúcida de amor
(ante o insano imparável crescente).

a ti, Bela,
Dona e Rainha
Senhora e Dama
reitero requeiro e invoco
— por nossa fala branca
......redonda
......aberta e branca —
teu abraço doce
sereno
acarinhante
(ante a brutal vacuidade reinante).

a ti, Bela,
Dona e Rainha
Senhora e Dama
reitero requeiro e invoco
— por nossa fala branca
......redonda
......aberta e branca —
tua ordem plena
rasgando a terra ao meio
e, aí, escorada,
possas banir da superfície
os vigentes actos farsantes sem coração
— devidamente, como mereceis —
e guardá-los no sub-mundo junto a vós
em lento e suave trabalho de reciclagem
segundo a regra-mor da redenção:
sã protectora
oráculo dos que amam
Dona Senhora Dama
nossa Rainha Inês.

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*Maria (de Fátima) Toscano nasceu Alentejana de Campo Maior, no mês de Maio e tem sido tecida pelos laços que faz, desfaz e refaz; pelos espaços que a marcam ou habita/m (Abrantes, Ilha do Sal-Cabo Verde, Águeda, Alentejo, Lisboa, País Basco e Coimbra), e pelos sonhos que arrisca, desde jovem, investigando os territórios da expressão e da criação pela arte: TEUC, 1980; IBIS - Teatro Universitário – ISCTE; Núcleo de Expressão Dramática da AEISMT – 2001-2002; direcção artística da Oficina de Teatro Universitário do ISMT, com ritmo incerto de trabalho, desde Abril/2003; animação de bares e restaurantes de Lisboa e Coimbra – anos 80/90 (música popular portuguesa e brasileira, fado; criação de espectáculos de cafés-concerto - canções de Piaf e textos próprios; convidada por Natália Correia para interpretar canções de Piaf na tertúlia de 8 de Março/1991, no Boutequim); canto, pontual, do Fado de Lisboa, desde 1993; canta no livro-cd «Poemigas. Versos y Canciones (Espanha, «del Lunar», col. Del Nagual: 1998).
Tem, publicados, sete livros de poesia (Minerva de Coimbra, Palimage Ed., e Pé de Página Ed.) e algumas Antologias ou Colectâneas de poesia integram textos seus (Coimbra Encantada, 2003, Pub. D. Quixote); e, no prelo (Pé de Página ed.), a sua tradução do conto argentino de Silvia Longohni: “A Árvore das Flores Amarelas”. Tem, por editar, onze livros de poesia; um texto de crónicas poéticas; uma colectânea organizada de textos dispersos dos anos 80, 90; e uma colectânea de sonetos (2003).
Desde 1997, tem criado sessões de poesia – que classifica de rituais poéticos de modo a diferenciarem-se da prática declamatória: fundando-se no cruzamento de téc-nicas teatrais participativas, tem vindo a experimentar abordagens da poesia que impli-cam a / e dependem da participação do público, sempre entendido como parceiro activo e interlocutor (p.exº: Animação nocturna na Alta de Coimbra, 15/ Nov./ 1997; «Poesia Torguiana – uma nova dependência tóxica» - poesia de Miguel Torga com Joaquim Basílio (sessão: foyer do TAGV, Coimbra, 1/Fev./2000; e todas as apresentações dos seus livros).
Paralelamente, na vertente profissional, é Socióloga. Ensina no Inst. Sup. Miguel Torga (Coimbra) desde 1990, investigando, actualmente, sobre os processos de requalificação social de mulheres designadas como pobres.