31 maio, 2010

começar o poema de uma maneira diferente

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este é o mar.
antecedido pela areia inconstante
tornando-se mais fiel
à medida que se aproxima das águas
deste. deste que é o mar.
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picotado por madeiras curtas
e cordas grossas
labirintos desenhados / para os peregrinos de dunas
caminhadas
desesperos a superar
desgostos para sofrer
desejos por conhecer
dores de amores tidos e per
didos
este é o mar.
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alisado à beira-terra pelo rodo
das ondas. brancas.
desalinhado, por sua vez, pela elipse
das mesmas ondas. densas.
habitado pela ignorância humana
dos plásticos aos preservativos
sujos
habituado — até quando? —
ao desconsolo e ao desrespeito
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este é o mar.
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mundo de seres cromáticos guardadores do silêncio
fundos de seres com asas membranas e fios de luz
casa de plantas mágicas de ostras raras / deuses e fadas
que por respeito ao lastro de águas
devêm sereias, tágides, hárpias, tritões ou ninfas.
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este é o mar da consolação do olhar e da emoção.
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este é o reconforto para pacientes cascos nos duros invernos.
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este é o mar da diversão que vê nascer
quando o sol espreita
bolas e ringues e cordas e tudo o que faz o saltar,
a brincadeira.
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este é o mar da descoberta dos seios e receios mais escondidos.
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este é o mar da sedução
onde se depositam os primeiros
beijos de paixão.
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este é o mar.
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calmo e dançante.
calando, rugindo, silvando.
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este é.
o mar.
azul.
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maria toscano
Figueira da Foz, snack-bar marisqueira "Johnny Ringo"
15 Maio / 2010
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26 maio, 2010

custa muito ver o pai chorar

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custa muito ver chorar o pai
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quando chegavas das comissões /
— dizíamos: das colónias, do ultramar; dizemos: da Guerra Colonial — /
quando chegavas/
antes, vinha sempre um telegrama/
branco /
a confirmar a chegada/
do barco e/
a informar sobre o cais/ onde desembarcavas/
e / antes/ também vinha sempre um aerograma/
(amarelinho ou verdinho ou azul turquesa-clarinho) /
onde nos anunciavas que estavas bem (há 15 dias! que era o tempo da viagem do barco)/
e que acabavas a comissão /
no dia x/
pelo que já não nos enviavas mais aerogramas.
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esses dias — os do último aerograma — iniciavam os rituais de renascimento de todas nós/
e deitávamos mãos à limpeza e embelezamento/
da casa.
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cada uma de nós/
— cada uma com diferentes mãos de diferentes habilidades e tamanhos —/
esfregava os tacos com palha-de-aço/
os tachos e pratos amarelos de família (os de estanho não me lembro agora como os políamos) com esfregão de esparto e areia /
ou, mais tarde, /
com o produto maravilhoso, a sularine, que vinha numa garrafinha de lata dourada onde sobressaía um coração verde e vermelho, patriótico pois, atravessado por uma seta dourada./
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a sularine poupava-nos /
algumas dores /
de músculos (nunca assumidas):/
'o pai vai regressar! o pai vai regressar!' /
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cada uma de nós/
com diferentes tamanhos de mãos — com as nossas 6 mãos — /
 tirávamos os cortinados das sanefas/
lavávamos, /
à mão, no tanque, /
os cortinados/
encerávamos, à mão, as sanefas/
e o chão /
entretanto já limpo.
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cada uma de nós/
com as nossas 6 milagrosas mãos/
tirávamos a loiça toda dos armários/
e lavávamo-la/
à mão/
no lava-loiça de uma torneira/
só /
de água fria. /
antes, as panelas e as cafeteiras de alumínio, /
as maiores, /
eram cheias de água e /
postas ao lume/
até que fervesse/
para termos água quente que se misturava, no lava-loiça, /
à água fria.
aliás, nem era mesmo no lava-loiça:/
havia 3 alguidares: /
um, para "fazer a água" da lavagem, com detergente com grãos azuis que desciam de uma embalagem de cartão, cada vez mais húmida, com o uso/
o outro, para as águas de enxaguar e o outro/
era onde se ia pondo a louçada a escorrer, pois o escorredor depressa ficava a abarrotar.
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com as nossa saudosas 6 mãos/
limpávamos com panos de louça/
que se sucediam/
vencidos pelo encharcanço/
de tanta louça húmida que havia que limpar e secar até brilhar/
e depressa/
para, por sua vez, caber outra tanta — lavada /
e enxaguada em várias águas —/
a escorrer.
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os alguidares tinham começado por ser barro/
de vários tamanhos/
em tons de castanho e/
com flores alentejanas pintadas. /
depois, à medida que o verniz /
saltava ou que se rachavam e partiam, passaram a ser /
de zinco /
cinzentos /
tristes. /
mas os mais modernos/
eram os mais garridos; de plástico vermelho/ creio.
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quando chegavas da comissão/
as nossas 6 mãos obedientes ao estado novo /
aos medos e à cartilha maternal /
levantavam e sacudiam tapetes/
colchas/
passadeiras carpetes e /
todo o tipo de abafos. /
bem que as batíamos, às carpetes!/
ou, se dava, bem que os lavávamos. /
havia uns rolinhos de madeira /
com uns grampozitos nas extremidades/
próprios/ para segurar as passadeiras /
na escada da entrada. também esses pauzinhos eram encerados/
pelas nossas 6 carentes mãos.
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penso, agora, /
como a relação com estes elementos — água, lume, madeira e pele — /
nos ajudaria na espera.
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quando regressavas vivo de uma comissão/
cozinhavam-se pratos /
e sobremesas /
apropriados para o teu regresso/
(em casa de remediados/
havia que planear bem os gastos)./
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tenho a certeza de que nos trazias /
prendinhas/
a todas /
mas, agora, /
desculpa lá! — /
não me recordo de quais. /
porque o teu abraço a nós as três/
e às nossas 6 mãos mais crescidas /
era tudo o que queríamos/
e não esqueço.
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quando chegavas da comissão. /
de uma vez, recordo: /
era época de Natal /
fomos, só nós os dois/
ao musgo/
para o presépio. /
nesse ano/ ainda não andaria na escola./
nesse ano/
deste-me a tua mão /
forte/
e ajudaste-me a subir ladeirinhas caminhitos e passagens /
com lama e folhagem/
que nos meus medos /
de gaiata eram precipícios /
tenebrosos./
mas ali ia a tua mão/
forte e meiga/
a guiar-me e a amparar-me. /
voltámos dois perfeitos cúmplices /
com os sapatos encharcados/
os pés molhados ( 'óh, óh! então nã é que ainda se constipam? para quê tanto musgo?' ) /
mas com uma escolha e um carregamento de musgo /
invejáveis para qualquer um./
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naquela época./
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um homem também chora — digo-o frequentemente./
 e sinto-o/
revoltada e indignada contra essa mentira/
deslavada/
da mulher sensível-burra/
e do homem só razão-bruta.
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nesse ano, /
pai, /
deste-me a tua mão /
forte e terna.
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noutras vezes, pai.
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sempre que saía contigo, pai:/
dávas-me a tua mão/
forte e terna/
e ajudávas-me. /
ensinavas-me a travessia de ruas, multidão, trânsito e vida.
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percebe-se, agora, porque é que
custa muito
ver
o nosso pai
a chorar?
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maria toscano.
Coimbra, Galerias santa Clara
23 Maio/2010.
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estórias de um cão que fala (III)


li há dias numa folha de jornal que quase levantava voo do chão nas traseiras da casa uma frase de um filósofo sim porque é lá que eu consigo conhecer os filósofos que são uma espécie de poetas sem versos e "a vida só se pode tornar arte quando primeiro se tornar trabalho"... mas com tantos desempregados que o meu dono diz que há na classe média e são esses que estão a complicar tudo na função pudica eu não percebo nada disso só sei que quase todos usam óculos alguns por intervalos dão aulas outros arrumados numa classe mais pequena com tendência a aumentar atravessam o Tejo a nado depois os mais danados esgravatam o céu vão a fatimah por causa de alguns poemas do alberto caeiro. em tempo de crise até o céu é mais caro se eu fosse político havia de implementar com a ajuda do nosso senhor das finanças um imposto e uma taxa para os que colocassem uma escada no terreiro do paço em público aplicava-lhes uma penitência com retroactivos toda a noite gosto tanto deles só não gosto que limpem a cidade e não deixem os restos de comida nos caixotes de lixo assim acabavam de vez com os mendigos sabiam? “ah larmes! vous n'as rien a dire?” sou um cão um cão do lixo trago trapos de nuvens no corpo e na boca que não caíram do céu a minha doença é fingir que não sou um cão a sério

é estranho ter que controlar o que se sente


Maria Azenha,
Maio de 2010, in Paisagens Textuais

A Caminho de Silves



Em toda a Europa os anfíbios (rãs, sapos, salamandras, tritões) estão a desaparecer. Ocupamos com casas e plantações de batata os seus nichos, poluímos os regatos e charcos, eles ficam sem lugar para viver.
É lamentável.


O conto em baixo, «A caminho de Silves», foi desencadeado pela morte súbita de um passageiro que ia connosco no comboio, no dia anterior à abertura da Bienal. Há quem suporte mal a ideia da morte, falar-se da morte é assunto tristonho. Eu acho o tema rico, só será mórbido se as nossas ideias forem mórbidas. O que me incomoda na minha morte é o transtorno que vai causar a quem tiver de me enterrar, e tal. Peço desculpa antecipadamente. Espero que haja dinheiro na minha conta para o funeral.


Por falar nisso, e bem sei que não deixo elos lógicos à vista, estou a desfazer-me dos meus livros. Se alguém estiver interessado, fale. A seguir serão os quadros. Preciso de me libertar do jugo dos haveres, que são poucos, pouquíssimos, mas vão transtornar muito quem não sabe o que são, para que servem, etc..


Não penso morrer já, nada no horizonte anuncia tail eventualidade, não, mas preciso de me preparar, quero libertar-me para partir, pegar só numa maleta de rodinhas e - quem sabe? - descobrir por aí uma casita de pescadores onde possa passar uns meses, de Inverno, se possível, a escrever um livro. Um livro qualquer, não interessa, interessa é a tarefa de escrever um livro à beira-mar, de Inverno, com a ventania a fustigar o telhado e as vagas a partirem-se com fragor de encontro à rocha em cima da qual estará a casita comigo dentro, a escrever o livro.


Se alguém souber de uma para alugar, barata... Mas primeiro tenho de me desfazer de uma quantidade de tralhas para poder partir muito elástica e levezinha.


**********
*****
Não me sinto bem. Um enjoo, uma falta de ar, um não sei quê estranho que não consigo determinar. Não devia ter empreendido esta viagem, mas ficar em casa só porque não ando na melhor forma? Nem pensar, quero participar no Encontro de Poesia. Acontecimento internacional, vou dizer poemas e debater o estatuto do poeta na sociedade contemporânea, numa das mesas redondas. Não podia falhar. Uma anemia não é nada de extraordinário. Nada, ninguém morre por causa de uma anemia, mas, se tiver de partir, olha, é só uma sequência natural das coisas, em viagem já eu vou. E de viagem venho, de Espanha, onde estive na VI Bienal de Poesia Andaluza... Os poetas estão sempre em movimento, são eles que asseguram a dinâmica necessária à vida cultural de um país. Com poucos apoios, só algumas Câmaras são receptivas e lá vão ao menos patrocinando o alojamento e as refeições... Salário, nem pensar! A actividade de poeta não é reconhecida como trabalho, todos os autores são pagos, excepto os poetas... Esquecem-nos, sorriem, brincam, troçam de nós, ah!, anda a escrever um livro de poemas? Sempre está entretido... Não nos levam a sério, escrever poesia não é trabalho, é entretenimento... Por isso não nos pagam, não nos publicam, e troçam... Mas quem leva alguma colher de cultura à boca das cidades de província, quem garante que as cidades, mesmo importantes, não morrem de anemia das Letras? Os ficcionistas? Os ensaístas? Não, esses fazem um congresso de quando em vez, nas grandes capitais ou nos mais famosos centros turísticos, mas não caminham como nós de castelo em castelo, mochila às costas, como os trovadores na Idade Média, para levarem às terras mais longínquas o pão da poesia...

Sinto-me cada vez mais fraco. Vou para longe e deixo para trás a Sylvia com um bebé de quinze meses. E os meus livros, quem tomará conta deles? Se calhar, atiram-nos para o lixo... E os cadernos com tanto poema para rever, grupos inteiros deles que já se organizam em livros... E a mochila que tenho levado para Amsterdam? O problema nem é atirarem-na para o lixo, sim deixar eu atrás de mim tanto motivo de preocupação para quem se ocupar dos meus despojos... Arrumar tudo... Aliás, tudo está naturalmente onde poderia estar, não há assim tanto espaço nem móvel na casa... Se houvesse estantes, os livros escusavam de andar às voltas em cima da cama... Alguém vai deitar mãos à cabeça ao ver livros e papéis na cozinha, na casa-de-banho...

Morrer traz incómodos aos vivos, bem queria evitá-los. E tenho evitado, na verdade: além dos livros, nada mais possuo, fui-me libertando a pouco e pouco do supérfluo. Só os livros são essenciais. Não devíamos possuir bens, para podermos partir sem carga... A carga dessa carga, preciso de esvaziar as gavetas, deitar fora papéis que só servirão para causar perplexidade a quem os ler... Mas, meu Deus, morrer aqui, a caminho de Silves, essa cidade onde viveram tão belos poetas árabes, e que me garantem inebriar com o perfume das flores de laranjeira? Não posso morrer aqui, ainda vamos no Alentejo, segundo o médico sentado à minha frente. Percebi isso, fala-se em inglês, a carruagem vai cheia de turistas a caminho da praia.

Deixa ver o que tenho na carteira... Passaporte europeu, com local de nascimento, na Holanda... Nem morada nem telefone... Uns cartões de visita, este é do Juan Molinos, escritor da Andaluzia... Passei estes últimos quinze dias em casa dele... Se morro aqui, vai ser um problema para os portugueses contactarem os meus familiares na Holanda... Pegam no telemóvel e desatam a ligar para todos os contactos, e quem, na lista, responderá numa língua minimamente acessível como o inglês?

Ai, sinto-me mesmo mal, uma fraqueza... Suores frios... Nada na carteira que permita a alguém avisar a minha família... Só por aqui vejo uns papéis com o endereço do Juan Molinos... E que família? A Sylvia? Não somos casados, ela é só a mãe do meu filho. Foi um acidente, como posso eu garantir a criação do Conrad? Adoro o Conrad, é a minha cara, mas sou um... Sou o quê? Como é que a sociedade me classifica? Um irresponsável? Um desempregado crónico? Um vagabundo? Um marginal? Um mendigo? Aceita a sociedade que eu seja um poeta?

Tenho comido tão pouco, custa-me sobrecarregar a Sylvia. Vamos falar com a claridade absoluta dos teus poemas, Clovis: passas fome. Por isso o médico te diagnosticou anemia. Andas mais magro que um cão vadio, Clovis, a pele amarelada, e cheiro a não sei quê adocicado, Clovis. Sinto-me mal disposto... Precisava de levar alguma comida à boca, mas fico sem dinheiro se vou ao bar, e a carruagem do bar é das primeiras, não a conseguirei alcançar...

Oiço zumbidos dentro dos ouvidos, as pessoas perguntaram alguma coisa mas não compreendi... Está tanto calor e custa-me respirar, vou à casa-de-banho...

Não convém fechar a porta, era um berbicacho terem de a arrombar se morresse trancado aqui dentro... Que ninguém morre de anemia, mas lá que me sinto fraco, sinto... E cheio de calor, vou ao menos tirar as peúgas... O comboio anda aos tombos, roda à volta de mim numa zoeira... Quem serão estas pessoas que me amparam e me levam quase no ar para fora do WC? Alguém esperava que eu saísse, uma senhora de rosto redondo e olhos pequenos. Sorriu, não percebeu que sou um poeta de palavras fortes mas de pernas fracas...

É o casal de médicos que ia comigo na carruagem... Mandaram parar o comboio por minha causa? Oh, não esperava que me atribuíssem assim tanta importância... A mão de alguém mexeu-me nos bolsos, tiraram-me a carteira... Não, não foi para me roubarem, o médico folheia os meus papéis e um homem fardado escreve numa agenda...

- Do you live in Spain? - pergunta o médico. E mede-me as pulsações pelo relógio, enquanto eu olho para o céu quase branco, tanta é a luz, e tanta a efervescência no meu sangue... Estou deitado no banco de pedra daquela estação de nome tão maravilhoso, que nome era? Fixei, eu fixei o nome da estação, apesar de a língua ter um sabor tão estranho: Santa Clara Sabóia... Santa... O céu é um sorvedouro branco, sinto-me atraído por ele, e mergulho, mergulho num torvelinho de cintilações prateadas... Reajo, tenho de me levantar e levanto-me, o médico é uma projecção de sombra à minha frente, não lhe distingo as feições, só a voz distante, de enxame de abelhas:

- Do you live in Spain? - quero responder, sorrio antes da resposta, erguido a mais do que a altura dele, olho-o de cima, sem sobranceria mas com o orgulho dos bons... Sou um grande poeta, todos o sabem... Não queria causar aborrecimentos a ninguém, mas é verdade que o comboio está parado por minha causa, há tanto tempo, tanto tempo... Mais de vinte minutos, comenta alguém... Percebo que chamaram uma ambulância, o médico continua a falar comigo, vai chegar a ambulância, promete, os passageiros do comboio sairam para o bosque, não posso dizer que sairam para a rua, não é verdade? Isto é um lugar de fronteira, nem cidade nem campo, pronto, sairam para a poeira, outros espreitam por cima dos ombros de quem está à frente para me observarem e então, numa fração de corisco, uma faísca atravessa-me e sinto-me desabar no chão, estou morto, o médico ajoelha, põe-me a mão sobre o coração e com a outra faz força, fica ali tanto tempo a dar massagens ao coração, coitado, deve estar cansado, olho de cima para aquela cena, um grupo de pessoas chocadas, há uma, dentro do comboio, que solta gargalhadas, decerto em reação nervosa, está roxo, que quer isso dizer?, que não vale a pena, é só por descargo de consciência que o médico insiste na massagem cardíaca, o homem está morto há mais de três minutos, oiço, lá em cima, no céu de almofada de penas, lavado, claro, tão nítido, e depois a música alarmada da ambulância que chega, e há-de levar-me, só incómodos para os portugueses, desculpe, sorry, sorry, peço perdão por ter morrido, só queria participar no Encontro de Poesia, não era desejo meu causar-vos tanto atraso e tanta perturbação...

Maria Estela Guedes ,in Revista Triplov e Poema Plural

24 maio, 2010

A Pele da Terra




Subsídio para um poema visual.
clicar na imagem

21 maio, 2010

o caçador.cativo *// à laia de resposta

-ao joão rasteiro.


haviam.se em vão procurado nas cidades

percorreu continentes e
quando desistiu
encontrou.se solto no ritmo lento
de uma valsa
dançada em contra.mão

desintegrado

sentiu as ondulações das searas
que searou em dança lenta e
regressou estranho às recordações de antanho
antanho era a linguagem de seus avós

cresceu junto à terra gretada
pela fome das manhãs abertas e
desde cedo sentiu a boca
apagada pelo desejo de terra pão
fustigada pelo vento

pulou a cerca
construída sobre os dias
como as copas das árvores que
costumava ouvir à noite entregue
aos seus passos de caçador furtivo
numa dessas deambulações encontrou.a
solta
aproximou.se e ela a medo levantou as asas
no voo ferido




soltou os cães e
ficou suspenso à dança do animal
em voo
primeiro raso
depois mais alto
arribando em direcção ao mundo
em tons de mel
engrossou o batimento das asas
ao som da presa
o homem / caçador / cativo
daquele voar
enquanto filados
os cães esperaram a voz de comando

ele muito aquém da aventura
seguiu.lhe o volteio
o silêncio da terra foi o elo que os uniu

ele o caçador cativo
ela solta à migração
o desejo
deixou.os sob um manto de horas
semeadas a esmo
que estranho aquele olhar que
se projectou na mira do caçador
tornando.a vulnerável


o cúmplice
jogo do agarra e foge
ele o efabulador
regressou caçador
ela de asas fechadas
pronta a deixar.se prender
olhou.o
ele viu.se
projectado no olhar em flash

uma ave / dona




-bogdan zwir.
_______________________________________

*gabriela rocha martins ,in , "Os dias Do Amor. Um poema para cada dia do ano", ed. Ministério dos Livros, 2009

Arquitectura Revisitada



Á gabriela rocha martins


................,No céu
uma intempérie
como só a intempérie do amor.

Pela arquitectura da carne
a sua cicatriz era a taifa acesa
o inaudível.

Porém para me mostrar a flor
ouso pensar que o fogo de I´timad
apazigua o Sul:

- Não existes
Silves lá no remanso do rio
sem as vestes escravas do sagrado.

Diria que era I´timad
a indivisível luz
e que é o verbo primordial da aurora.

Consigo o desabrochar da sílaba
ciclos do alfabeto do tempo
cativos do alaúde:

- Incandescente, tão incandescente
como a melancolia do sémen
que outrora era lágrima
a chuva de Primavera aberta ao cio
de eternidade em eternidade
como um denso aroma, suave corpo.



João Rasteiro
8 de Maio de 2010

carta para o exílio



do que me escreves eu vejo a lua.
as palavras rondam um objecto insólito
crescem pêlo a pêlo das tuas órbitas.
fora do poema
jaz um cadáver com um véu de noiva,
o que é perfeitamente natural e honesto.
a entrada de um corpo em decomposição
carece de provas irrefutáveis.
não pode dizer-se simplesmente
entrou em decomposição,
porque o corpo pode ainda morrer.
de maneira que a noite deita-se a teu lado
e copulam livremente.
contudo,
a castração das fêmeas antes do primeiro cio
não resulta foneticamente.
repara.:
uma vaca a parir um filho
não sangra dos cotovelos.


alice macedo campos


o cilo menstrual da noite
edium editores, 2008

19 maio, 2010

como?

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como dizer?
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como encontrar verbo adjectivo nome?
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uma mera sí-la-ba cur-ta
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justa em tom cheiro e gesto
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certa. a desenhar teu voo alto
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de asa planante, águia sem fome?
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como?
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digo: como dizer como és?
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como dizer a forma verbal de teu ombro
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a conjugação do salto seguro do muro para o galho
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de vida que acalentas?
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como? digo eu: como dizer?
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como o desgosto amargo
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a farpa estática que guardas dentro de ti
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a flama inocente que provocas
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adiantas em resguardo ténue
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temeroso, receoso
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a flama de amor que avidamente
ateias
ateias e ateias?
.
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como te entregas?
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como, por entre os actos de mediação,
.
te encontras com o brilho
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intacto
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com a virgem cor dos novos astros
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vagarosos eternos?
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como te recordas?
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como te dizes?
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como — meu amor que me não é — como amas?
.
.
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.
como
te incendeias?
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maria toscano,
Coimbra, Café Santa Cruz, 13 Maio/ 2010
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18 maio, 2010

estórias dum cão que fala (II)



acordei hoje com um olho negro sim porque um cão também tem pesadelos vejo o dobro o que não é de todo mau pois assim é mais giro o PEC por acaso o meu dono há dois dias que não se levanta da cama diz que lhe levaram tudo mas eu já lhe expliquei que não é novidade nenhuma um tipo morre depois ressuscita com outro nome num futuro adiante transforma-se em Gregor ou em PM nunca saberá porquê depois fica com os cabelos curtos tem conversas com todo o mundo o PR começa a responder mais rápido e ao contrário de tudo pelo que percebi no pente a pente até o Passitos dá dois passos atrás estava no programa depois pede muita desculpa aos fregueses o que faz andar para trás o Buraco e para a frente como ontem no pós e lontras. bom mas sem um olho é difícil ver tudo e sem um grito não sabemos o que vem a ser uma linha recta em 2014 isto só vem a propósito do meu olho negro desconfio que me meti num canil estas coisas de integrar o real no sono deixam sempre marcas as pulgas dão cabo dos olhos as que eu conheço levam para a escola o maralhães não usam aquelas toneladas de livros que dão cabo da coluna bem basta a calça justa porque a realidade é como os pássaros azuis de Maeterlinck que perdem a cor na gaiola devemos conversar com tudo e com todos com as borboletas com as letras com as tretas enfim sou um cão muito democrático estou a fotografar eternamente tudo um delírio um dia destes quando o meu dono for PM sem se lembrar dou-lhe um beijo no nariz ele apanha um susto será um dia lindo não vês?

eu não gosto daqueles que não gostam do meu olho negro



maria azenha
2010-05-18

16 maio, 2010

só pra Vos dizer que vou
hoje
daqui
comovida
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somos loucos!
sã loucura!

bêjussss
da mt

(óspois apaguem: é que nã consegui escrever comentários: era o que queria: comentar toda a reportagem da Bienal)

Parabéns pelo registo que aqui fica!

aula prática

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"beija-me as mãos, amor, devagarinho" - Florbela Espanca
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poder tomar as tuas mãos nas minhas
acolhê-las, docemente, sem remorsos
assim só, com a ternura que a idade
me vem abrindo ensinando consentindo.
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poder tomar, entre as minhas mãos, as tuas.
pausadamente.
sem outros arrepios que os da pele.
segurar com firmeza a tua candura
embalar, solidária, essa tristeza
para que não volte mais a converter-se em amargura.
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é desta fé que se fazem os milagres.
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é deste gesto de colo que emana o fundo verso.
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é desta surda e louca maré incansável
que brotam os amores e as paixões imortais.
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frágil o tacto intenso toque. íntimos febris.
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ah poder vestir-me com o menino que te habita
escorregar pelo corrimão da compustura
correr de braços abertos por entre o vento
ganhar a velocidade da vida-luz
e reatar o meu diálogo com as luas
.
vibrar em cada estrela
latejando.
meu corpo em espasmos reinventando os céus.
.
confiar-me à nortada
e ser-lhe o sul
para onde sopra,
em ânsias,
apaixonada.
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esvoaçar-me em poros de árvores e pássaros
quando as asas transparentes se desfraldassem
com o febril enlace dos nossos corpos sábios.
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acolho as tuas mãos nas minhas. sem sussurros.
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a esta página ensinamos, docemente,
docemente ensinamos a loucura da paixão.
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maria toscano
12 Maio/ 2010.
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14 maio, 2010

estórias de um cão que fala (I)


-romain de tirtoff



sou um cão. um cão.

ontem quando o P M falava de água leite e coca -cola enrolei-me todo nas patas. fartei-me de rir porque um cão não bebe coca-cola e leite já lá vai o tempo de mamar a água não é problema se for transtornada em vinho o que vai provar os milagres que ainda hoje existem o meu dono que estava na sala comigo começou a falar sozinho de há uns tempos para cá é o que ele faz fartei-me de ladrar mas ele não me ouviu já se habituou coitado a ganir e eu comecei a falar um livro anda mais devagar é como uma caixa abrimos e fechamos várias vezes as letras e as páginas no dia seguinte estão lá outras palavras e voltamos a ler

há livros de todas as espécies os que tratam de plantas os que ensinam matemática e até há livros para adormecer o livro do PM ajuda a pensar Pensamos por exemplo em água leite e coca- cola. pouco mais há a dizer a não ser piratas aventuras e irmãos metralha mas estes são de outra estória da mesma colecção

ninguém imagina como é bom ler um livro do PM tem só uma página não demora nada a ler

os outros personagens estão fora do livro só se podem ver na caixa negra do plasma mas isso é como tudo hoje em dia ninguém diz nada do livro do PM há lá grandes paisagens para ensinar não está dito mas vamos todos juntos para o grande buraco e nada absolutamente nada substitui esta enorme alegria de vermos meia dúzia de palavras num outro mundo a nascer hoje em dia é tudo muito rápido

vá com o seu cão a uma livraria compre-lhe um livro de que ele goste inscreva-o numa canoteca descubra o seu cão nos livros e fique mais próximo dele

cada bocado de livro novo vai fazer parte da sua casa como se fossem laranjas ou batatas ou como trepadeiras

um dia vou escrever como um cão. um cão a sério.

só me resta um pirolito



maria azenha
2010-05-13

À laia de encerramento.........



Faço um pequeno balanço da IV Bienal de Poesia de Silves, porque há certo número de assuntos que não podem ser deixados no esquecimento.

Silves é uma cidade encantadora no Algarve, rescendente a flor de laranjeira - as laranjeiras da praça maior, frente à Biblioteca, ditas ornamentais, parecem alfaces, e não se entende por que motivo se descurou um dos ícones da terra, desprezando as que davam fruto comestível. Encantadora mas completamente morta, segundo os habitantes, à excepção das actividades na Biblioteca Municipal, e continuo a citar os habitantes.

Primeiro ponto a tocar: o que se passa na Biblioteca durante a Bienal é exemplar: directora e funcionários aliam-se e empenham-se para levarem a cabo uma série de acções culturais e de entretenimento, assegurando ao mesmo tempo um clima de alegria, que permite aos poetas sentirem-se em casa. A enorme quantidade de imagens que recolhi e publico no TriploV dão-nos a prova do que afirmo.

Num período em que se lamenta que as Câmaras não só estejam descapitalizadas como endividadas, prestemos à Câmara Municipal de Silves o tributo do nosso reconhecimento pelo facto de quase só com a prata da casa se terem assegurado os espectáculos que acompanharam os trabalhos literários. As bailarinas do Projecto Dansul agradaram, tal como a atmosfera poética da Cisterna Árabe, em que dissemos poemas. Os funcionários da Biblioteca, em particular Paulo Pires, com o seu acordéon, também animaram as tardes e as sessões nocturnas. Quanto ao passeio no Rio Arade, foi delicioso, e permitiu avaliar a diversidade de espécies que nele têm habitat: garças, cegonhas, rapináceas, gansos, e outras. No capítulo da Herpetologia, fiquei entusiasmada ao ver tantos cágados nas margens, provavelmente representantes das duas espécies que existem em Portugal.

No que se refere aos espectáculos externos, foi uma belíssima surpresa o concerto de Vera Mantero e Gabriel Godoy. Vera Mantero é uma artista magnética, que faz prodígios musicais com a voz.

E o espectáculo «Os Lobos», de Maria Toscano, em que todos participámos, foi muito divertido e religador.

Isto para dizer que a Bienal é sempre um acontecimento, um espaço de reciclagem mental e de conhecimento de novos escritores. O que se passa alcança muito bom nível, por isso dá gosto participar e honra-nos o modo como somos tratados. Esperamos que não se perca pelo caminho a iniciativa e que possamos reencontrar-nos em 2012 para a quinta edição.

Dê-se aos poetas o que é dos poetas, aos funcionários da Biblioteca o que lhes compete, à Câmara o que à Câmara pertence: parabéns por tudo ter corrido quase na perfeição. Para o fim fica a obreira principal do acontecimento silvense, a quem presto homenagem especial,  Gabriela Rocha Martins

Maria Estela Guedes ,Abril 2010 ,in Triplov .

Dia 25 de Abril - tarde - 3ª mesa redonda - O tempo no tempo do poema

[ da esquerda para a direita - Nassalete Miranda ( moderadora ) ,Luís Serrano e João Rasteiro ]
Intervenientes - Maria do Sameiro Barroso, Maria Toscano, Luís Serrano, Fernando Esteves Pinto, Pedro Afonso, João Rasteiro, Alice Macedo Campos e Porfírio Al Brandão

O tempo no tempo do poema

Base da intervenção de João Rasteiro na IV Bienal de Poesia de Silves



“ (…) Correr a mão / pelo corpo que tens em tempos
quedos, / deixá-la ir pelos agostos fartos / pelas horas de
ceifas e de verão. / Deixar que a tua pele me guie os dedos /
para chegar aos olhos e fechar-tos”

Pedro Tamen


Se de alguma forma podemos afirmar ser “função” da poesia, se é que deverá ter alguma função, entre outras coisas, a produção do real ou quotidiano, a configuração da instigação ou persuasão e encantamento, a ininterrupta adequação entre meios e fins, um projecto cultural ou estético e ético, etc. (embora todos estes parâmetros se possam valorizar mais ou menos em função do contexto) e, ainda que seja recorrente a afirmação bastante conhecida de Shelley na sua “Defesa da Poesia” (1821): Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, hoje, a criação poética cada vez mais se vê (ou deveria ver) reduzida àquilo que Hugo Friedrich chama "dissonâncias", "anormalidades" e "categorias negativas".

O poeta norte-americano Robert Creeley tem um poema que coopera na configuração do papel da poesia hoje: Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí, está o lugar da poesia e do poeta: bosque / mundo "onde ninguém vai”. Pressões e tensões em ebulição. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao "cultivar" tensões, distancia a poesia do espaço comum das realidades deste mundo.

Pedro Tamen assevera: Suspendo a mão entre o A e o B, / entre a minha vida e a vida que andará / dentro da minha vida.

A vida dentro da vida, o tempo dentro do poema, o tempo que revela quase sempre a visão particular do mundo, ou dos mundos do poeta e a sua atitude perante a problemática que envolve o ser humano. O tempo no tempo do poema é espaço aberto, no qual o poeta concretiza a sua visão da vida e a imagem do espaço que o alimenta e destrói, o tempo onde se reassume a função originária de baptizar os signos do mundo. Como afirmou Roman Ingarden, em A obra de arte literária, esta, não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exactamente na peculiaridade dos estratos singulares. Os estratos são heterogéneos, combinam-se entre si, têm características particulares, garantindo a unidade do todo. E é no tempo do poema, que o poeta enraizado em seus peculiares e singulares tentáculos, intenta e arrisca fazer uma fusão entre o plano da vida coabitada e o plano da vida criada, num tempo outro, num sonho outro. A caverna, onde a poesia e a sílaba acesa se direccionam para o sentido profético do “verbo-milagre”, que tem o poder de acarretar à vida, ao explosivo campo da linguagem, qualidades metafísicas da morte e, ao mesmo tempo, revelá-las em seu esplendor de vida. Um tempo sem alicerces e sem inquietude quanto à falta de alicerces, pois talvez isto seja o que a poesia era antes de a começarmos a metamorfosear. O poeta Herberto Helder profere apocalipticamente: Um poema cresce inseguramente / na confusão da carne, / (…) E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. / E já nenhum poder destrói o poema. / (…) — Em baixo o instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério. / — E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

O poema e a poesia deverão imperiosamente criar o seu próprio tempo, pois se não o fizerem, não estaremos perante poesia, mas perante uma outra qualquer forma ou estrutura de linguagem. O poema e a poesia fugindo do tempo linear em que assenta a força motriz do mundo, ou dos “mundos” (que aparentemente representam o real, mesmo se estivermos ante a denominada “poesia do quotidiano”) impondo de forma absoluta o seu próprio mágico e doloroso labirinto.

Profere T. S. Elliot, nesse fabuloso livro que se chama “Quatro Quartetos”: Ou seja, que o fim precede o princípio / E que o fim e o princípio sempre estiveram lá / Antes do princípio e depois do fim.

“Ou seja”, não deverão poesia e poema, abertos e subtis em seu permanente jogo de contrários, nessa imprevisível dialéctica entre espaço e tempo (o tempo fora do tempo e dos tempos) possibilitar as cúpulas para uma leitura outra (porque um tempo outro) do “mundo” ou dos “mundos”, em que quase sempre julgamos ilusoriamente ser deuses capazes do inefável, capazes de navegar o tempo inexplicável da intemporalidade?

O tempo da poesia, o tempo do poema, o tempo funcionando sempre, em cada momento único, como o descentramento da fortuita realidade em seu e nosso infinito labirinto.

Na eterna errância do poeta em direcção à morte, o que mais importará será a viagem, o trajecto, o longo trilho da memória sob o orvalho, o tempo dentro do tempo – o verbo corpo de linguagem. Infinita. Sempre aberta à imaginação, à sagrada ilusão da sílaba, o caminho outro, a consciência de uma particular visão do mundo derivado de um tempo próprio e único, como se a criação poética pudesse ser a brutal fonte da lucidez que brota da ilusão justificada – a verdade, essa ficará para os deuses.

Pois mesmo em poetas como, Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rimbaud, Withman, Baudelaire, F. Pessoa, Elliot, Pound, Yeats, Lorca, H. Hélder e outros, o tempo da poesia é apenas a concentração absoluta e pura da vida e da morte em sua trágica e divina ilusão, o carnal corpo da linguagem sempre exposto à ilusão do tempo e à absurda alucinação da metáfora. A peregrinação. A viagem com fim marcado.

Samuel Beckett não tem dúvidas quando pronuncia: Que faria eu sem este mundo sem rosto sem questões / Quando o ser só dura um instante onde cada instante / Se deita sobre o vazio dentro do esquecimento de ter sido.

O sentido e a rota inexorável do futuro estará sempre inscrita no que fazemos no presente. E é por isso, que é essencial fabricar-se uma perspectiva em que o tempo do poema terá que ser o centro em que se gerará a ideia de um tempo outro. Um tempo em que não exista tempo fora dos desejos dos sonhos e da memória. Onde talvez não exista sequer tempo fora dos signos que se sobrepõem aos sonhos e utopia que os invocam. Mas terá que ser forçosamente o tempo do poema, da poesia, a contradizer em seu habitat, em seu sopro de tempo, tal condição. É esse tempo que se apelidará de “tempo da poesia”. O tempo em que como diz Fernando Pessoa: Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas… / Que já têm a forma do nosso corpo…/ E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre / aos mesmos lugares.

O sentimento de um tempo, o tempo do canto feroz, onde a cilada e a cólera, a espera e o desespero, nascem dessa perspectiva de campo de fantasia, do lugar outro – a poesia!

Logo, não admira, que essa busca insana de imortalidade, de intemporalidade, nos iluda, mais ou menos consoante a dialéctica entre o espaço e o tempo, dependendo da forma com que neles nos representamos, tendo em conta a percepção da finita existência do verbo e da memória. Apesar da permanente ilusão de permanência no tempo do poema.

Pois é lá, na beleza do caos, no tudo que é nada, que a eternidade poderá iludir-se que acontece. Mas na verdade, o tempo do poema terá que continuar a ser o leito sagrado onde o poeta tecerá a urdidura que permitirá sonhar um mundo outro, um lugar outro, fabricando o linho ou a mortalha que concederá o sentimento continuado de ser omnipotente. E será esta urdidura no tempo do poema, que sustentará o leito mortífero do tempo. A poesia em sua harmoniosa e fatídica plenitude. A morte como alimento de vida. A poesia como língua-milagre em seu espaço aberto, capaz de transfigurar e metamorfosear a realidade e veracidade do homem, pois ela, como referiu Octávio Paz, é um “tempo revelado”, ou seja, a “enigmática transparência” do sopro incandescente. Pois, Não será o medo da loucura / que nos forçará a pôr a meia-haste / a bandeira da imaginação – André Breton,”Primeiro Manifesto Surrealista”, uma vez que como canta Pedro Tamen: A minha desforra são palavras / Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará.

João Rasteiro, Silves, 25/04/2010 , in Triplov

Dia 25 de Abril - tarde - Apresentação da Antologia "Poemas Portugueses......."


3. Paulo Pires e Jorge Reis-Sá




2. Jorge Reis-Sá ( com Rui Lage ) um dos seleccionadores da Antologia







1. Alunos do 10º ano da Escola Secundária de Silves


Iniciámos os trabalhos da tarde de dia 25 de Abril com a apresentação assaz acalorada de "Poemas Portugueses - Antologia Portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI", da Porto Editora ,e que contou com a colaboração dos Alunos da Escola Secundária de Silves, na leitura de alguns poemas

HERPETOLOGIA. OS CÁGADOS DO RIO ARADE: Emys orbicularis ou Mauremys leprosa?




Durante um passeio pelo Rio Arade, o patrão do barco chamou a atenção dos poetas para os cágados que se avistavam na margem, alapados na rocha, entre verdura, a apanharem sol. Se os Emys orbicularis não ultrapassam os 20 centímetros de comprimento, então é provável que fossem Mauremys leprosa. Vimos umas duas dezenas, em grupos de quatro ou cinco, alguns isolados. Os maiores pareciam ultrapassar os 30 centímetros.
A Mauremys leprosa atribui-se o comprimento de 18 a 21 centímetros e preferências aquícolas ligeiramente diferentes das de Emys orbicularis: o Cágado-mediterrânico não gosta muito de correntes, prefere águas paradas.

Também se garante que as duas espécies, ao contrário da lei natural, vivem em simpatria na Península Ibérica.

Bem, que eu não conseguiria ver absolutamente nada se elas tivessem 20 centímetros, é facto. Como estou convencida (podendo estar errada, claro) de que os animais que consegui ver, apesar das 7 e 8 dioptrias das lentes de contacto, ultrapassam à vontade os 20 centímetros, então resta pôr a hipótese de que indivíduos das duas espécies acasalaram e tiveram meninos. Os híbridos são geralmente bem maiores (e mais escuros), e mais fortes e bem apetrechados que os progenitores, não é verdade?

Os híbridos de Mauremys existem, e os de Emys também devem andar por aí, veja-se por exemplo o link:

http://es.wikipedia.org/wiki/Clemmys

Maria Estela Guedes ,in Triplov

Dia 25 de Abril - manhã - Descida do Rio Arade




Dia 24 de Abril - noite - Apresentação cénica de "Os Lobos", de Maria Toscano







6. Uma forma inusitada de terminar a apresentação de um livro....




5. o poeta António Simões




4. Curiosas as expressões de António Simões ( ao centro ) e de Domingos Lobo ( à sua direita )







3. A expressividade da autora




2. Maria Toscano e alguns poetas assistentes







1. quando se aliam o engenho e a arte - Maria Toscano



Momentos..........






...........De pausa e de convívio

Ainda durante a homenagem a Pedro Tamen



6. Parte da Assistência





5. Pedro Tamen autografando um livro





4. Pedro Tamen e Maria do Sameiro Barroso




3. A Senhora Vereadora, Drª Maria Manuela Guerreiro, oferecendo uma lembrança ao poeta Pedro Tamen






1. Paulo Moreira ,Maria do Sameiro Barroso e Pedro Tamen


Dia 24 de Abril - ao fim da tarde - Homenagem a Pedro Tamen



PEDRO TAMEN

TRADIÇÃO CLÁSSICA E POESIA URBANA,

SOB O LEVE SOPRO DE UMA GREGA CAMENA


Ouvis? Ou alguma amável loucura
comigo brinca?
Horácio, Odes III, 4


Cântico do eterno, da terra e do presente, assim se me apresenta a obra deste Poeta, presença que, embora discreta, se destaca na poesia portuguesa, a partir da segunda metade dos anos 50 . Nascido em 1934, Poeta e tradutor, fez a sua estreia literária em 1956, com o livro Poema para todos os dias. A sua obra poética conta com 20 livros, três dos quais incluem os livros anteriores (Poesia 1956-1978 e o livro inédito Aparelho Circulatório Moraes Editores, 1978, Tábua das Matérias, Poesia 1965-1991, Tertúlia, 1991 e Retábulo das Matérias, Gótica, 2001), 4 antologias e uma vastíssima obra de tradução. O Poeta oferece-nos um mundo pleno de sólidas experiências, plasmadas em múltiplos registos, que, no entanto, se abrem e articulam de forma viva, criativa e harmoniosa.
Escreve-se sempre para dar vida, para libertar a vida onde ela estiver presa, para traçar linhas de fuga. Para isso é necessário que a linguagem não seja um sistema homogéneo, mas um desequilíbrio, heterogénea sempre: o estilo vai desbravar nela diferenças de potencial, entre as quais qualquer coisa pode passar-se, pode um relâmpago surgir da própria linguagem e fazer-nos ver e pensar aquilo que estava na sombra das palavras, entidades de cuja existência mal suspeitávamos, escreveu Gilles Deleuze .
Traçadas estas linhas de abertura, a poesia de Pedro Tamen pode ser lida como uma viagem, ou como uma vertigem que desfila e desafia as fronteiras opacas ou as marcas transparentes da interiorizada ficção. Para o Poeta, o mundo é um espelho aberto à fruição dos contrários, ou um poço forjado na gramática do eu, projectado à abertura do cosmos.
Pedro Tamen é o Poeta que delapida a luz, o espaço, onde arde a terra, o seu centro, refeito, após o apocalipse mágico onde o infinito se banha e o finito se anula. O ser poético, o sujeito amante emerge na fluidez das metáforas que anulam o nada.
Sóbrio, circunspecto e conciso, em registos diversos, dilata o espaço, a linguagem, convocada entre a órfica pulsão e uma postura quase frontalmente anti-lírica. Em tríadas compassadas, a sua poesia percorre os estigmas de cinza ou as marcas fogo, nomeados nas substâncias elementais, redefinindo o lugar dos afectos, entre os lugares sagrados, os lugares banais ou os lugares onde as conexões inter-textuais assomam, tudo elegendo, em núcleos de tensão, onde a criação se opera.
Perfilados em ritmos, rimas, quadras, redondilhas, sextilhas, sonetos ou versos livres, a sua poesia abre-se numa polifonia multissémica, onde convivem palavras que aparentemente jogam, enquanto se distendem, num amplíssimo fôlego, no acto de alcançar o seu limite extremo, no qual se pulverizam ou reconstroem, desmultiplicando sentidos inconfinados, entre lúdicos fulgores, telúricos recessos, configurados entre arquétipos de luz, confrontados já com a inominada catábase dos abismos.
O Poeta está livre, perante a solidão do mundo. Convoca a terra e a alegria, por entre a música, o ruído e o silêncio. Procura os eixos insondados, as formas puras ou a génese nominal do seu movimento imperfeito.
Neologismos, arcaísmos, palavras de outras línguas, linguagem sem enfeite nem feitiço que rolam do quotidiano, vivem, convivem e respiram, na sua nudez secreta, com a estância espessa dos símbolos e o domínio transfigurador do universo da metáfora.
Num fresco e novo olhar sobre as coisas, consolida, com mestria, a harmonia que subjaz à tensão do surpreendente. O sujeito poético é um artífice que transpõe as emoções e as palavras, medindo-se consigo próprio, esgrimindo, com a sua espada negra ou dourada, o mundo, o ser, o cosmo, ou o simples registo do quotidiano, seguro de que, tal como formulou Theodor W. Adorno:
A arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde .
Detentor de um caudal poético imenso, num rio de intenso fulgor, não procurarei desdobrar todas as suas espirais. Entre os seus núcleos temáticos, como já indicia o título deste trabalho, deter-me-ei no seu universo de referências clássicas, procurando explicitar o que se me afigura mais original e fascinante, na sua voz poética.
Mais do que da própria leitura, procurarei captar algo do seu silêncio, da sua tensão, do seu sopro, contido no seu espaço interdito ou na intenção expressa no fluir dialógico das suas metáforas da criação, ciente que, citando Martin Heidegger:
o ser criado na obra só se deixa manifestamente compreender a partir do processo da criação. Assim, por imposição das próprias coisas, temos de aceder a levar em conta a actividade do artista para encontrar a origem da obra de arte .
Sobre a multiplicidade dialógica do Poeta e sobre o seu vasto universo referencial, é de referir o trabalho notável de Luísa Freire .
A minha leitura iniciar-se-á pelo primeiro poema O dia, que indicia as linhas programáticas e fundadoras que enuncia:

Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural Inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.

Na primeira estrofe, o binómio infância-velhice configura o tempo, a música e a memória, em isotopias de juventude, fertilidade e frescura que e presença do mar amplia:
Os relógios não são jovens. A juventude é uma característica do ser humano. Os relógios são velhos ou novos. Esta transposição, quase tão antiga como a própria arte, é explicitada por Theodor W. Adorno:
A arte gostaria de com meios humanos realizar o falar do não-humano .
Os relógios de Pedro Tamen são jovens e tocam Mozart, têm, portanto, uma capacidade que só o contexto metafórico da poesia lhes confere.
A viagem-vertigem consubstancia-se nos carros, nos passos, a que o uso do imperfeito confere movimento e a própria acção amplia-se, transformando a estática dos velhos, também mobilizados a convocar o regresso e a sombra de tudo o que foi perdido, até que todo o movimento se condensa na forma de um pássaro, que, por todo o voo que lhe é inerente, se apresenta imóvel sobre a alma, algo que pertence ao domínio do etéreo que é apresentado como sendo todo o sol do Inverno, tempo por excelência da imobilidade da terra, que repousa, para de novo recuperar a sua fertilidade na Primavera.
Mas, antes disso: o mar estava perto nos olhos da gente, o que quer dizer que não se desloca, como os barcos que chegam freneticamente: um barco chegava em cada minuto, e o mistério do mundo parece assomar, pois: e o segredo bailava nas mãos da criança.
A presença da criança aproxima-nos na inocência primordial, a partir da qual tudo acontece. Esse estado de inocência aproxima-se do nada. Tal como na concepção de Martin Heidegger:
O projecto poemático provém do nada, no ponto de vista em que o que nunca aceita a sua oferta a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida no próprio ser-aí histórico .

A segunda estrofe rememora elementos do passado:

Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos).
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
— cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
— nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.

Os elementos do quotidiano assomam de forma concreta: uma paz sob as gabardinas evoca um tempo de paz e onde a humidade, elemento ligado à fertilidade, se desloca para elementos urbanos: as rodas dos carros. A memória contínua: tão solta no ar, como que movida por isotopias que confluem na frescura e no verde: as folhas tão verdes marcavam os anos.
E, estranhamente, a chuva não nasce das nuvens, mas da terra: A chuva nascia da terra para o ar. A terra é entendida como centro/origem/regresso, lugar para habitar o mundo, vazio a preencher com a construção do poema.
Também nas concepções de Martin Heidegger, a terra está no centro da génese poemática:
Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, produz a terra. O produzir deve aqui pensar-se em sentido rigoroso. A obra move a própria terra para o aberto de um mundo e nela a mantém .
A permanência da terra alarga-se à gente, que como que deixa de pertencer ao tempo que, num fluir jocoso: ria na cara da gente perpétua. Nos três versos seguintes, a chuva em ligação com a rua, elemento urbano, no qual a terra permanece como elemento telúrico, a terra, cheirada por um cão vadio, surge como que movida pelo grande gesto da criação.
No resto da estrofe, a terra e os seus seres continuam a ser exaltados: Rua colocada por amor das formigas. Versos como: pequeno brinquedo achado no bosque, ou Ligeiros, os céus brincavam escondidos/com a tarde criança presente no ar,/jogavam às pedras ao pé dos passeios, convergem numa atmosfera lúdica e jovial, à qual se juntam: pessoas de faces vermelhas,/de um sonho pequeno agora acordadas.
E, de repente, como que todos regressam à infância: seus passos miúdos de nada sabiam/— nada estava feito e tinham dez anos, sob a complacente neblina que, como um diáfano e branco véu: sorria de perto a tudo o que era/e tudo saltava na sua presença.
Nas terceira estrofe, evocando os movimentos fetais e o parto, o tempo, as horas, cada vez mais rápidas, naturais (escorregavam) e jovens (berço dos ramos) configuram a génese desta poética, isto é, ao primeiro momento do mundo, ou, transposto para a criação, o primeiro momento em que surge o poema:

Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.

Na quarta e na quinta estrofe, neste mundo, cada vez mais fresco, vivo e fecundo, selando uma aproximação natural: manaram os beijos, que marcam o sinal da aparição da amada. Tudo se prepara: Espreitam os sinos, riram-se as escadas,/tudo estava pronto e de novo erguido. Como que nos aproximamos do Éden primordial:

Tão bela que vinhas como que da infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas .

A presença da amada faz retomar os anos perdidos, a sombra de outras noites, e a plenitude anuncia-se: eis que tu chegavas e eis que eu te via,/e as horas sorriam, felizes, completas.
Na estrofe seguinte, a sétima, a amada é transfigurada em metáforas da natureza e da criação. Sobre este processo, refere Theodor W. Adorno:
A natureza deve a sua beleza ao facto de parecer dizer mais do que é. A ideia da arte é arrancar este mais à sua contingência, torná-lo senhor da sua aparência, determiná-lo, a ele mesmo como aparência, e também negá-lo como irreal .
A presença do mar, desde o início do poema, agora toma um novo sentido, evocando a concha de Boticelli, no quadro “O nascimento de Vénus”:

Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...

De notar a beleza/leveza do verso: dançavam secretas tuas mãos de aragem, e a associação da presença da amada à palavra, ao canto da aurora (dos galos) e à tranquilidade da própria respiração que se estabelece, na oitava estrofe: Agora tu eras a essência dos nomes, /os galos cantavam, era bom respirar.
Os versos seguintes denotam uma ligação muito forte à terra, onde os pés assentam, transfigurados numa metáfora deliciosa: Os prados distantes ficavam tranquilos,/esperando os teus pés, berlindes pequenos.
Na última estrofe, a plenitude amorosa afasta os terrores antigos: Nunca mais a noite mordida no escuro, /nunca mais o dia manchado de cuspo, nunca mais o véu tapando-me tudo.
E o novo rumo é traçado: Agora eu sabia que em cada manhã/nasceria o sol atrás dos teus ombros.
Para Horácio, tão querido ao Poeta (que cita uma epígrafe latina sua no livro Horácio e Coriáceo (1981) e na epígrafe latina e abertura do livro Dentro de momentos (1984), é, através da amada, que também: o canto mitiga os negros cuidados .
Há, neste universo poético, algo que, de novo me remete para Hesíodo, para a obra Teogonia, na qual a Terra e o Céu começam por existir, separados pelo Caos, o espaço vazio, e onde Eros é a força originária, criadora e animadora do cosmo .
O Poeta retoma a tradição. De acordo com Walter Benjamin:
O carácter único da obra de arte é idêntico à sua integração no contexto da tradição. A própria tradição é certamente algo bem vivo, algo de extraordinariamente mutável .
O sonho amoroso/o sonho criador consubstanciam-se na segunda parte do livro Os Dias, ditando o tempo, o gesto, a palavra, o real e o irreal confundindo-se, tal como a doçura dolorosa do amor:

Sonho-te real em lágrimas de mar,
refaço as mãos, tuas raízes verdes,
conto e reconto as horas que passámos.
Repiso os passos, rasgo a estrada branca,
renasço em cada gesto que fizemos,
beijo-te outra vez, ajoelhado...

Enquanto longos, dolorosos versos
nas veias vão doendo.(R.M., p. 25)

Os dias passam, no novelo dos ritmos, percorrendo o insondável, delimitando o espaço, percorrendo fronteiras, redefinindo o real.
Nesta poesia, a temática amorosa é luminosa e central. Nela confluem alguns dados da biografia do autor, em registos, nos quais à procura da amada se alia o elemento divino: A que deuses te devo, e na procura/revelação do nome, está subjacente a procura da verdade ontológica (poema do livro Escrito de Memória (1973):
2
Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais os olhos e qual a noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome. (R. M., p. 281).

De destacar, a beleza e profunda cristalinidade dos versos: É verdade que olhas, é verdade que dizes./Que todos temos medo e água pura.
Há algo muito claro e natural (água pura), mas também algo sibilino (medo) que remete para a essência da verdade e do ser. Para Martin Heidegger: A essência da arte é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade .
Nesta paisagem poética, os deuses surgem de vez em quando. Na poesia ocidental, tal como refere Roberto Calasso: Os deuses são hóspedes da literatura (...) manifestam-se de forma intermitente, segundo a expansão e o refluxo daquela a que Aby Warburg chamou «onda mnénica» . Os deuses em questão são os deuses gregos que, noutros livros de Pedro Tamen surgem associados à fertilidade, num contexto amoroso, como que primordialmente feliz, associado a Deméter, a deusa que os gregos celebram nos mistérios de Elêusis, pois, é graças ao pacto que fez com Hades, o deus do mundo inferior que raptara a sua filha Perséfena, que a terra reverdece, na Primavera, quando esta regressa e o mundo retoma o luminoso dia. O livro Primeiro livro de Lapinova (1960), está, de resto, repleto, de isotopias de fertilidade:
8
Ouves, meu amor, a água que brotou
no côncavo da pedra que a tua mão marcou?

Ouves, meu amor, o passo do veado
correndo no caminho que só por nós pisado?

Entendes, meu amor, a voz que fala agora
do tempo que esperou, da lenta e só demora?

Já onde nós somos a nossa paz presente.
Só nós entramos nela e agora é o que sente.

Alumiam-se as noites, Deméter aparece,
tu sentas-te a meu lado e o trigo reverdece.(R. M., p. 140).

A água, o côncavo da pedra, o passo do veado, a voz que fala agora precedem a epifania da deusa, que sanciona a união dos seres e do todo. Como diz Martin Heidegger:
Todas as coisas da terra, ela própria na sua totalidade, desembocam numa recíproca harmonia .
Quanto ao processo criativo, segundo Luísa Freire: É sabido que Pedro Tamen escreve por ciclos (ele o afirmou já em várias entrevistas), constituindo cada livro um corpo poético com uma unidade de sentido, mesmo quando a temática é variada (...) .
No livro O Sangue, a Água e o Vinho (1958), todo ele atravessado pela noite e o sagrado, há poemas claramente alusivos à religiosidade cristã, como o da Parte I, O sangue:
8
Uma única morte: agora em toda a parte, exangue, vem nos ventos,
soa na flauta abandonada, quebrado renasce pela terra-
Homem sou e sei: no enterro, longo, a espalhar-se nas ruas,
lá estaria, lá estarei, lá fui, de noite, desembuçada a carne.
Tão próximo e passado, tão hoje, tão mudado daqui a poucos dias,
raiz de muitos braços a perfurar o estrume. Cheiro,
recordo o pó, as patas agitadas, cavalos importados
em barcos, em galés, vinham de Roma vivos. Cheiro
o sangue mas os gritos não cabem. Mas os gritos não cabem
numa única morte. (R. M. p. 87).

Desde o primeiro livro, há também referências a outros deuses e outras religiões que o Poeta percorre, quer sejam portadoras de rituais cruéis, como a do poema que o pacífico pescador de múrex é confrontado com sacrifícios fenícios ao deus Baal (actualmente postos em causa por novas descobertas arqueológicas), ou com a violência inerente à própria vida, no (Poema para todos os dias, III Todos os dias, 20 (R. M., p. 57), quer os paradigmas religiosos tragam o consolo, porque estão associados aos elementos da natureza, ou porque, muito simplesmente, segundo José Jiménez: a religião é sempre portadora de uma promessa de felicidade, de identidade e de realização humanas . E, mesmo nos contextos de crueldade, segundo Miecea Eliade: O ritual refaz a criação .
No terceiro verso: Homem sou e sei, ecoa a conhecida citação, atribuída a Terêncio: Sou homem; e nada do que é humano me é estranho (Homo sum; humani nil a me alienum puto) (Heautontimorumenos, 163 d.C.).
E, num contexto puramente clássico, surge um pequeno poema (na III Parte, O vinho):
5
Alguém domador de cavalos,
Aquiles de pés velozes.

Na franca insuspeitada
balança inabarcável
quem sabe os pés que pesam?(R. M., p. 112).

Numa espantosa capacidade de síntese, o Poeta coloca, lado a lado, alguém que não nomeia, Heitor, o melhor dos guerreiros troianos, que é também o pai, esposo e oficiante religioso. Heitor é o descendente de Príamo, o velho rei que ainda reina mas é a ao jovem Heitor que compete defender, num combate perdido, a já condenada cidade, Tróia, domadora de cavalos.
Aquiles é o herói homérico, o herói grego por excelência, que sabe, de antemão, que a cidade será destruída depois de derrotar Heitor. Sabe que a sua própria morte se seguirá, mas, perante Tétis, sua mãe, optara entre uma vida curta, mas coroada de glória. André Bonnard define da seguinte forma os dois heróis: Aquiles ama a vida o bastante para preferir a intensidade dela à duração . No que respeita a Heitor: A sua coragem é a mais alta coragem, a única que, segundo Sócrates, merece esse nome, porque, não ignorando o medo, o supera . O guerreiro e o cidadão defrontam-se, numa luta sem tréguas. Heitor sabe que vai ser morto e a cidade destruída, mas não pode fazer mais que cumprir o seu destino .
E que pés pesam afinal, na inabarcável balança? Os pés velozes do maior dos guerreiros da Antiguidade, ou os pés de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, domadora de cavalos, mas cujos pés, derrotados, às portas Ceias, foram arrastados vezes sem conta, no cadáver amarrado ao carro de guerra do colérico Aquiles. Onde pesará a cândida humanidade do cidadão, marido e pai, a quem a história roubou o nome?
E, no nosso tempo, quem pesará mais, na balança ética da valorização actual, os guerreiros de Homero ou os camponeses de Hesíodo? Lemos facilmente, nestas referências, os heróis destruidores da guerra do Iraque e os camponeses e os habitantes urbanos sem nome, despojados da sua própria identidade.
De resto, já no título do poema O dia, bem como o título do livro Poema para todos os dias, havia algo que não podia deixar de convocar Hesíodo, o Poeta grego que, no século VIII a. C., escreveu os Erga, conjunto de poemas que escreveu no final da sua vida, nos quais nos oferece uma pintura viva da vida campesina, opondo aos heróis homéricos, o esforço e a grandeza dos que trabalham a terra. Também tem o seu heroísmo e valor a luta tenaz e silenciosa daqueles que cavam, lavram e plantam, lutando com a adversidade e com os elementos .
Do livro Horácio e Curiáceo (1981) no qual paira a explicação inicial de Tito Lívio, segundo a qual, na mítica formação da história de Roma, embora iguais em idade e em força, ninguém sabia a que povo os tês irmãos pertenciam, marca uma impossibilidade de identificação da origem dos guerreiros e agressores (R. M., p. 441).
A epígrafe de abertura de Horário, talvez o seu excerto mais conhecido, no qual o Poeta enaltece a aurea mediocritas, parece querer contrabalançar, através da sabedoria de vida, as consequências destruidoras, provocadas pela cobiça e pela sordidez do ser humano. Neste livro, lemos um dos mais surpreendentes poemas do Autor:

(Cesariana)

Está um Volswagen branco matrícula HG-63-24
e por detrás passou um Renault 12 azul.
Atravessa agora a Maria Antónia com um saco
de plástico dos Estabelecimentos Mar-do-Sul.
Agora é uma camioneta de rações de gado
e um senhor careca de duffel-coat e pasta.

E se porém ou nisto me degrado,
explode aqui, no espaço de um quadrado,
a absurda inocência de Jocasta. (R. M., p. 477).

Neste poema, parecem ecoar ainda rumos que Horácio traçou, mas agora, no que se refere à transfiguração da linguagem:

Não penses por acaso que hão-de morrer as palavras
que eu, nascido junto do Áufido ao longe ressonante,
por artes nunca dantes conhecidas
com minha lira canto .

Num registo diferente, em relação aos poemas que citei ou analisei até agora, mas que também utiliza com abundância, o Poeta coloca-nos perante uma cena de rua. Começa com a matrícula de um carro branco e vai descrevendo outros elementos que se cruzam: outro carro azul, uma mulher anónima que tem nome: Maria Antónia com um saco/de plástico dos Estabelecimentos Mar-do-Sul. E mais duas insólitas presenças: Agora é uma camioneta de rações de gado/e um senhor careca de duffel-coat e pasta.
A propósito desta temática, Walter Benjamin analisou a transformação da linguagem poética, a partir de Baudelaire que introduziu na poesia vocabulário que anteriormente estava, à partida, excluído da linguagem poética:
Baudelaire ultrapassou, tanto o jacobinismo linguístico de Victor Hugo como as liberdades bucólicas de Sainte-Beuve. As suas imagens são originais devido ao carácter baixo dos objectos de comparação. Observa os processos banais para aproximar deles o poético .
Do que quer que se passe, neste poema, o que mais importa é o remate de forma ainda mais desconcertante: E se porém ou nisto me degrado, /explode aqui, no espaço de um quadrado,/a absurda inocência de Jocasta.
Mais uma vez, o Poeta surpreende pela habilíssima capacidade de transformar uns versos que, devo confessar, à partida me causaram um enorme desagrado, em algo que, a partir da introdução, no espaço de um quadrado, da absurda inocência de Jocasta, adquirem um límpido e inequívoco sentido.
Na realidade, na peça de Sófocles, nunca foi claro como é que Jocasta nunca suspeitou que Édipo podia ser seu filho, uma vez que, tal como é referido na peça, apresentava estranhas parecenças com Laio. Quando Édipo a interroga sobre o aspecto físico de Laio, Jocasta responde: Era alto, na floração das primeiras cãs; não diferia muito do teu aspecto .
A partir desta resposta, torna-se difícil compreender, como foi possível ter pactuado com toda a situação, sem nunca ter suspeitado do crime em que estava envolvida.
Quem não se lembrará da frase que de Theodor W. Adorno que fez correr rios de tinta: Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch (Depois de Auschwitz, é bárbaro escrever um poema.), tema sempre actual, que reuniu escritores das duas Alemanhas divididas, em Frankfurt, em 1988 .
E, a propósito de crimes quem não pensará, no fundo de si, a partir deste insólito poema, nos crimes aos quais assistimos, absurdamente alheios e impotentes?
Os poetas continuaram a escrever durante e depois de Auschwitz, como foi o caso de Nelly Sachs e Paul Celan, entre outros, ou mesmo o caso dos presos que escreveram poesia, nos mais diversos suportes e confessaram que escrever os tinha ajudado a sobreviver . Mas Paul Celan foi criticado por ter produzido arte a partir dos horrores vividos nos campos de concentração, no poema Todesfuge . A questão não é escrever. Mas, num mundo cada vez mais desumanizado, a escrita e a arte foram e possivelmente continuam a ser questionadas.
Alguns gritaram a sua pulsionalidade, como foi o caso de Wolfdietrich Schnurr:
A lírica é erótica. Assim a considera a vida. Por isso a defende. E deve então calar-se, após um triunfo da morte de tal forma global?
(Lyrik ist sinnlich. Also meint sie das Leben. Also verteidigt sie es. Und da soll sie, nach einem derart globalen Todessieg, schweigen?) .
E, em Der Meridian (O Meridiano) discurso que proferiu, quando recebeu o Prémio Büchner, em 1960, Paul Celan, afirmou: A arte regressa (Die Kunst kommt wieder) .
Mas a arte e a poesia sofreram alterações profundas, nas quais toda a dialéctica poetológica tem que ser reequacionada. Assim, se, por um lado, Paul Celan afirma:
E a poesia seria assim o lugar, onde todos os tropos e metáforas querem ser levadas ao absurdo (Und das Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und Metaphern ad absurdum geführt werden wollen.) .
Ou Elargissez l’Art! .
A esta atitude, contrapõe:
Alargar a arte? Não. Mas vai com a arte ao mais apertado do teu estreito. E liberta-te. (Die Kunst erweitern? Nein. Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.) .
Pedro Tamen parece ter trilhado estes caminhos estreitos, estes becos, nesse quadrado, onde se desenrola a cena que descreve, acompanhando este cenário, onde a arte cada vez mais se abre ao inconfinado.
Para Michel Foucault: A literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção do discurso; todavia, ela ocupa aí um lugar especial: obstinada a procurar o quotidiano por debaixo dele próprio, a ultrapassar limites, a levantar brutal ou insidiosamente segredos, a deslocar regras e códigos, a fazer dizer o inconfessável, ela terá tendência a pôr-se fora da lei, ou pelo menos a tomar a seu cargo o escândalo, a transgressão ou a revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, é ela que continua a ser o discurso da “infâmia”: cabe-lhe dizer o indizível –o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o vergonhoso .
O título deste singular poema de Pedro Tamen, (Cesariana) não pode deixar de remeter para essa excisão problemática.
Sobre o universo clássico, referirei ainda a obra Dentro de Momentos (1984) (R.M., p.507), pela dialéctica entre a fugacidade das palavras e o seu aprisionamento, em versos, utilizando a voz de Horácio, novamente, como epígrafe inicial.
Neste livro de poemas muito curtos, destaco outro poema, desconcertante, no que concerne o tratamento de temas clássicos:
6
Orfeu ao balcão avia bicas
sem poder olhar Eurídice na caixa.

Transposto para o nosso tempo, o mito de Orfeu é recriado na impossibilidade de olhar/na impossibilidade de amar. Não há mistério nestas personagens. Foi por olhar Eurídice, que Orfeu, com a sua lira, conseguira resgatar ao mundo dos mortos, que a perdeu, pela segunda vez, definitivamente.
Como diz Paul Veyne, aquilo que se opõe ao tempo, tal como se opõe à eternidade, é a nossa actualidade .
Umberto Eco, distingue dois tipos de postura em relação à arte:
A arte contemporânea tinha-nos habituado a reconhecer duas categorias de artistas: de um lado, os que vão procurando novas formas, entregando-se a um ideal quase pitagórico de harmonia matemática, inventando configurações apoiadas em relações secretas e que, para chegarem à poesia, passam pela geometria, euclideana ou não; do outro, os artistas que reconhecem a fecundidade do acaso e da desordem .
É na segunda categoria que incluiria o Autor deste poema, embora noutros se possa incluir na categoria anterior.
Na realidade, segundo José Jimenez: As vidas humanas não podem abrir-se ao encontro dos múltiplos sentidos que lhes servem de suporte simbólico na pura instantaneidade, senão no (re)conhecimento dos tempos (passados/futuros) e espaços (épocas, cenários culturais) diversos .
Neste poema, Orfeu pode ver-se também na perspectiva do anti-herói, protagonizado por Woyzeck de Georg Büchner pois a vida de Orfeu é rotineira, apagada e banal, tal como a de Woyzeck,
Orlando Neves, que traduziu a peça, escreveu, na introdução: Em 1834, data do começo de Woyzeck, foi como se Deus tivesse criado os camponeses e os artesãos no quinto dia e os príncipes e os nobres no sexto .
Há ecos do mito das cinco idades da obra Trabalhos e Dias de Hesíodo. A partir da idade de ouro, a humanidade vai percorrendo vai percorrendo as várias idades até chegar à quinta raça:
Quem dera que eu não vivesse no meio dos homens
da quinta raça, que morresse antes, ou vivesse depois!
Agora é a raça de ferro. Não cessam, de dia,
de ter trabalhos e aflições, nem, de noite, de serem consumidos ,
pelos duros cuidados que lhes oferecem os deuses .

A existência do homem não é fácil. Mas, no tempo dos deuses olímpicos, a vida também não era assim tão fácil para os próprios deuses. Para Walter Otto:
A existência dos deuses desenrola-se em princípio num horizonte a que a morte é estranha. Os olímpicos não vivem, no entanto, numa eternidade imóvel, mergulhados numa luz límpida. É na dimensão de uma continuidade «efémera» que se renova dia após dia que eles desfrutam o seu afastamento da negra morte... .
Uma concepção muito próxima deste conceito, está presente no poema de Pedro Tamen:
55
O tempo nasce com o nascer do sol.
Todos os dias nasce o tempo (R.M, p. 516).

É como se tivéssemos de conquistar os dias à eternidade. E não será?
Ainda neste livro, Apolo é apresentado de forma radiosa, aos dias mais longos do ano, no Verão, tempo de pujança da natureza:
30
Agora é Verão:
cresceu Apolo
e volta a casa tarde (R. M., p. 512 ).

No livro Delfos, Opus 12, cujo título de conotação musical, parece, desde logo estar em consonância com o Apolo, deus da poesia e da música, reporta-se aos seus lugares sagrados. A ilha de Delos, onde nasceu e o vale de Delfos são evocados, recriando os vários aspectos da sua complexidade simbólica e mitológica. A indicação da visita a Delfos e as notas que o Autor fornece servem de suporte exegético à leitura (R.M., p. 541).
Segundo Walter F. Otto: Os deuses mantêm as suas singularidades porque permanecem as tensões entre eles . Estas tensões são aludidas de várias formas, a partir do poema 1. Numa intensa expressividade dramática, é expressa a oposição de Hera ao nascimento do deus, filho de Zeus e de Latona, no verso: Por sobre a terra intensa/nula criança chora (R. M., p. 521).
António Ramos Rosa, num ensaio publicado em 1986, salientou dois aspectos: a dramaticidade deste Poeta e a dimensão interior que cria (e amplia), na sua ligação ao sagrado:
Vejo na poesia de Pedro Tamen uma das mais sérias tentativas para dar à actividade poética aquele sentido do sagrado, sem o qual não se pode atingir a verdadeira dimensão interior. Violentamente dramático, quase sempre, este poeta restabelece a circulação entre o humano e o elementar infundindo à linguagem poética uma energia e expressividade que superam a mera agressividade do bizarro, tantas vezes esterilmente ofensiva em alguns poetas surrealistas .
O tempo adquire uma dimensão intemporal no poema 8. Tal como em Delos, a morte é abolida:

Quando souberes agora que é atrás da linha
dos montes núbeis que se ergue o sol,
do mesmo passo sabes que esses montes
refazem a palmeira inicial, na rocha replantada,
figurando o lugar de nome repetido
de nenhum parto outro, ausente morte:
vasta bacia para a eternidade (R. M., p. 528).

À luta de Latona, junta-se a luta entre Apolo e Geia, a deusa mais antiga, representada como deusa-serpente, que dominava esse lugar, que Apolo passou a ocupar depois de matar a serpente Piton:
5
O que foi o último a nascer
onde nunca ninguém morreu
nem mais que a sua irmã surgiu à luz,
ele que, vindo da palmeira, encheu de flores
a rocha agreste que Hera permitiu
— olhou aqui a hórrida Serpente
que a deusa despeitada lhe deu em desafio.
E ao matá-la tomou a voz da terra
cuja verdade engana (R. M., p. 525).

Os deuses gregos foram substituindo as divindades arcaicas anteriores, embora a voz da terra permaneça una, neste cenário em que os deuses, segundo Walter F. Otto: São o mundo, e o mundo é multiforme. Não obstante, o homem conhece a unidade do divino .
No poema 3, a planície, onde outrora havia corridas de carros, dos quais é testemunha a belíssima escultura do auriga de Delfos, retoma o espaço primordial onde a vegetação se instala e cresce como: Púbis, sagrada e verde. Esta imagem é de um erotismo subtil que atravessa o poema, em outras isotopias como as coxas do Parnaso, o umbigo róseo, e, às premissas de fertilidade enunciadas, junta-se a necessidade premente de trabalhar a terra, nos versos: Terreno defendido e proibido/verde velho/que um homem, mão erguida/quer lavrar (R. M., p. 523).
Os deuses gregos surgem ligados a factos e fenómenos naturais. Para Walter F. Otto, nos deuses gregos O divino não tem superioridade sobre os factos naturais como um poder soberano: manifestam-se nas formas do natural como sua essência e ser .
O poema 7, poema central do livro, define as qualidades do deus, que se situa no ônfalo. Em Delfos existe uma pedra que simboliza o centro do mundo:

Seio, centro, nó: lugar
da ligação e em que o contrário
une. Tal como aquele
que aqui te conquistou.

Guardador de rebanhos, amigo das ovelhas
mas dos lobos. Senhor e escravo.
É ele o curandeiro, mas também
o que da morte zunia as doces flechas.
Amador de mulheres que não o queriam
e dos jovens mortos por acaso.
O tocador de lira, o que aceitou a flauta.
Conquista o seu desejo e dele
a negação. Claro e turvo.
O que gerou enganos
nas linhas rectas
em que escreveu oblíquo.

Lugar de alto e baixo,
largo e estreito,
negro e branco,
lugar e não lugar,
a perdição achada (R. M., p. 527).

As características do deus possuem, como nos deuses ctónicos que os precederam, características bipolares. Apolo é o deus da luz, mas também é o Lóxias, herdeiro das profecias obscuras. O seu oráculo é o mais importante de todo o mundo grego e assim se prolonga no mundo romano. Nenhuma decisão política é tomada, sem que o oráculo, pela voz da pitonisa, seja consultado.
Apolo é também o deus da medicina, mas foi ele que enviou as setas que provocaram a peste aos exércitos gregos, no início da Ilíada. Apolo é o deus que, apesar da sua beleza, não conquista as suas (nem os seus) amantes, que morrem ou se transformam em plantas quando dele fogem. Conquista o seu desejo e dele/a negação., como afirma o Poeta. E, na obscuridade das respostas proféticas, pode precipitar os homens na sua própria perdição.
Apolo é o deus da poesia e da música, o inventor da lira, mas que convive com os tocadores de flauta, os pastores e é o deus da loucura profética, inspira a chamada mediunidade apolínea cujo objectivo é o de conhecer o futuro, bem como os segredos ocultos do presente .
Com as Musas, suas irmãs, partilha as instâncias da luz e da beleza:
15
Elas contam o mundo com os seus corpos.
Não dançam bem apenas, enchendo de alegria
os Imortais: dançam o bem, ou este
é a mesma dança. Indestrinçável
do que a beleza é, além
da que os homens conseguem (R.M., p. 536).

Talvez Apolo, ou algo equivalente nos parâmetros da actualidade, continue a actuar. Maritain, na sua obra Creative Intuition in Art and Poetry, afirmou:
«Por poesia entendo... essa intercomunicação entre a essência interior das coisas e a essência interior da criatura humana que é uma espécie de adivinhação.» .
E, entre as criaturas e as essências, fica a poesia de Pedro Tamen, como o rasto vivo que o amor nos deixa:

Alga de luz, submisso assunto
é este amor de face repousada
que dorme toda a noite
e acorda vivo.
(1990) (R. M., p. 696).

Maria do Sameiro Barroso