21 março, 2010

Jorge Velhote*





JOÃO MACHADO, OU O BORDADOR DE ÁGUAS



Com um lápis, escava no papel,
empurra pedras para cima
e para baixo, faz sulcos na terra,
planta árvores e aves, a breve luz
do anoitecer, o brusco salto dos peixes
que rasgam a água e a melodia dos insectos
que zumbem na lama das margens.

Para cima e para baixo empurra
pedras, faz sulcos na terra, desenha
um rio de seixos azul
sombreado com nuvens e barcos.
Cega a luz que revela os segredos,
escuta o efémero silêncio das mãos
pacientes, o ardor do vento que desarruma
as árvores e desperta as sombras.

É um lençol de lume, arco-íris inadiável
abrindo fendas puras entre pedras
como dorsos, um tambor de perfume.

Cada vez mais para cima e para baixo,
empurra pedras entre penedos e a noite,
decifra, entre destroços
os ossos, os martelos inebriantes dos ritmos,
armadilha com espelhos os filamentos do nada,
o brilho negro da música faz mergulhar
na fúria da poeira,

o bordador de águas acelera-nos
a morte, caça-nos entre as imensas
labaredas das tentações, depura
o nosso suplicante olhar com cerimónias campestres,
simulações, folhas, arbustos,
a disciplina dos portões e das fábulas, a minuciosa
magia do negro que faúlha entre os nossos dedos
e os nossos lábios e ilumina o medo do nosso olhar.

________________________________________________

*Jorge Velhote nasceu no Porto em 1954. Tem colaboração dispersa, desde 1978, por vários jornais, revistas, álbuns e antologias. Entre os seus livros contam-se obras como Os Sinais Próximos da Certeza (1983) e a tradução de As Asas de Orvalho dos Ventos, de Adnan Özer. Foi ainda director, com Raul Martins, da revista Rotura, publicada no Porto em 1979. Mais recentemente publicou Máquina de Relâmpagos (2005), com fotografias de João Paulo Sotto Mayor e ilustração de Mariana Negrão. Colaborou no n.º2 de Hífen – Cadernos Semestrais de Poesia (Abril-Setemb. 88).