23 dezembro, 2010

replicação





estou só.
vejo
os pratos de velhoses
outros de broas, travessas
à espera do bacalhau
copos para água para branco
outros para o tinto
e tantos mais para espumante
bruto
estou só.
vejo
milhões de velas
centros vermelhos
enlaçados em pinhas
fitas douradas
recobros de humanas vidas, duras vidas
pérolas
douradas pelas toalhas
espalham o brilho
que os dias de hoje não têm.
estou só.
vejo pendurar enfeites
anjos, luzes, faixas e
esperança
cuidadosamente
pendentes
nestes dias.
.
.
.
estou só no mundo
das maravilhas feitas em série
estou só na vereda
dos mercados do roubo anónimo
estou só no outono
onde a neve se vende em pó
porque trenó e renas
ficaram retidas no aeroporto.
.
.
.
estou só
sozinho neste mundo
eu e os meus.
Salvé o burrinho, a vaquinha
José, os Pastores!
Salvé Maria! Avé Maria
que me acompanham
desde sempre
no meu nascer
neste acre mundo
onde
ainda
continuo só.
.
.
.
maria toscano
Coimbra, Pastelaria Flor da Conchada.
22 Dezembro / 2010



12 outubro, 2010

"CHAMO-ME SATIE COMO TODA A GENTE"

( clique na imagem para aumentar )



A Amalgama abre um novo Espaço de Programação em Lisboa_uma parceria com o Teatro Gota.

Contamos com a tua presença na Inauguração com


“CHAMO-ME SATIE, COMO TODA A GENTE”

OU

TERNAMENTE AS TECLAS BRANCAS

A escritora Risoleta C. Pinto Pedro
em parceria com a

amalgama Companhia de Dança
apresentam nova criação em AnteEstreia


Um espectáculo de cruzamento pluridisciplinar entre a música de Satie, textos das suas partituras, com variações escritas e interpretadas pela escritora Risoleta C. Pinto Pedro, na dança de Alexandra Battaglia, com variações para piano de Gabriel Mateus Fotografia e Vídeo de Alexandre Ixhumni e Figurinos de João Pereira.

Especial agradecimento ao Ceramista Fernando Sarmento.



Sábado, 16 Out’10 às 21:30h

Teatro Gota

Calçada do Correio Velho, 14-16 – 1100-171 Lisboa (junto à Sé)



Nos dias de espectáculo bilhetes disponíveis na Bilheteira do Teatro Gota 1hora antes do espectáculo.
Preços:
Crianças 0-3 anos - gratuito
Dos 4-12 anos – 4,00€
A partir dos 13 anos – 7,50€

Lançamento da Arte-Livros ,São Paulo


Arte-Livros Editora

e os professores organizadores da série

LÍNGUA, CULTURA E LITERATURA,
Ana Haddad, Maurício Silva e Márcia Fusaro


CONVIDAM
para o lançamento conjunto dos livros:



Edgar Allan Poe e a Escritura dos espelhos – Lucia Santaella

Vinhetas – Leda Tenório da Motta

Quem, às portas de Tebas? – Maria Estela Guedes
Giorgos Seféris: mar, mares, memórias... – Ana Maria Haddad Baptista

Mares nunca dantes navegados – Maurício Silva

Tradução, enunciação e subjetividade – Murilo Jardelino da Costa

Percepção da natureza e do espaço habitado brasílicos na literatura de viagem – Paulo de Assunção

Recontando Clarice Lispector – Márcia do Carmo Felismino Fusaro

Aquisição e Aprendizagem da Língua Inglesa – Magali Rosa de Sant´Anna


Local
CASA DE PORTUGAL
Endereço: Av. da Liberdade, 602
SÃO PAULO SP - BRASIL
Dia: 27/10/2010 – Horário: das 19h às 22h

Apoio
Casa de Portugal de São Paulo
Apenas Livros, Lisboa

25 setembro, 2010

Para Carolina Beatriz Ângelo*

Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911), uma das primeiras médicas portuguesas e uma das impulsionadoras do Movimento Feminista, foi a primeira que praticou cirurgia e a primeira mulher a votar em Portugal. O novo Hospital de Loures vai ter o seu nome. Aqui fica a minha homenagem.





Nada vou dizer das tuas mãos, Carolina,
nem das bandeiras que ascendem nos gestos
em que a decisão é uma faca cirúrgica
a preceder a noite, o ser, a jangada ilesa,
a ousadia de um voto.
Lutaste.
Contra as serpentes vazias, acorrentadas
no país das sombras.
Combateste. Por ti, pela luz, pelo corpo íntegro,
juntando, uma a uma, as letras do universo
que encerra a palavra MULHER.

Talvez não soubesses que a vida é a palavra
com que a poesia define a flor das algas.
Talvez não soubesse que o amor é uma lua
vermelha, a morte uma cisterna salgada,
mas sabias que, em teus braços,
havia uma pluma leve,
no teu peito, uma ave canora,
e, nos teus olhos, uma rosa incendiada.

Nada, pois, vou dizer das tuas mãos,
Carolina,
nem da liberdade que flutua nos teus dedos.
Da noite, fizeste dia, à raiz, deste futuro.
Não mais, em casa, sufoca a génese
de fêmeas entranhas que gera sementes
maduras.

O vento consigo traz um cemitério de palavras.
Na tua boca, cada pedra é um dilúvio,
onde terminam velhas guerras.

Quando as novas rotinas se instalam,
dourado é o útero da terra.
Nas casas, nas ruas, nos sofridos hospitais,
o espaço, outrora interdito,
engendra novas quimeras.

Nada vou dizer de ti, Carolina,
nem do silêncio que urge,
quando as fontes são bandeiras,
onde brilham o sangue e a seda,
em becos, outrora escondidos,
com janelas para a rua.

Nada vou dizer de ti, Carolina, porque o sol
te pronuncia,
desde os tempos mais agrestes.
Os fluidos do mar ecoam em tuas essências
brancas de gardénias e violeta.
A noite é todo o corpo, dizes,
até que uma lâmpada secreta e pura
tudo venha iluminar.
A noite é mais que o leite que os mamilos
bebem, de manhã.
A noite é mais que o redondel de exílio
que os homens conceberam.

E bebo, com temor, o medo que ainda vivem
as mulheres de agora, pisadas, maltratadas.
Usam burka, no Afgnanistão,
sem direitos, nem auxílio.
Suicidam-se pelo fogo.
Queimam, numa agonia atroz,
o desespero que as corrói,
na sua pátria de exílio.
Pelo pesadelo morrem, sem ter o direito
à face, ao corpo, nem aos poros arejados
que é preciso libertar,
na noite, carrossel de exílio,
na morte, jardim de delírio,
no mundo onde os serem temem viver
o coração é cinza negra
que não os deixa despertar.

Por isso, é na sombra, que os poemas
se escrevem,
nos muros, nas fendas, onde as rosas
se insinuam em dolorosas flores de papel,
em ecos a lembrar ritos, sendas, laços,
rios que inundam o sangue,
nós que alimentam e enlaçam.

Como lembrar-te, mulher, política,
cirurgiã?
Como dizer-te, pomba, gladíolo,
vislumbre de luz, em jardim secreto?
O canto é novo, sempre novo.
Por ele vivo.
A ele respondo.
As águas escrevem-me,
quando as aves flutuam na manhã.



Maria do Sameiro Barroso


_____________________________________________

* ( Nas Comemorações do Centenário da República ) - Poema publicado no catálogo da Exposição de Homenagem a Carolina Beatriz Ângelo, Intersecções dos sentidos, palavras, actos e imagens, Organização Dulce Helena Pires Borges, Museu da Guarda, 2010, p. 45. O poema foi precedido de um estudo de nossa autoria, intitulado Prolapsos Genitais — a Tese de Carolina, pp. 42-44.

07 agosto, 2010

01 agosto, 2010

IV Bienal de Poesia de SILVES - 11




Apresentação da Antologia da Poesia Portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI.
Selecção de Jorge Reis-Sá e Rui Lage.

Leitura de poemas pelos alunos da Escola Secundária de Silves.
Mesa Redonda "O Tempo no tempo do Poema"

28 julho, 2010

25 julho, 2010

IV Bienal de poesia de SILVES - 10




Performance Ocasional
" Os Lobos" de Maria Toscano

17 julho, 2010

territórios

.
não tirei bilhete para a mesquinhez.
.
.
.
por isso
rio alto
falo alto
e
ocupo
o espaço
necessário
à minha
robustez.

.
.
.
maria toscano In "sulmoura"
Lisboa, Cervejaria Trindade.
16julho/2010.
.

IV Bienal de Poesia de SILVES - 9





Mesa Redonda "Ritmos e imagens criadas a partir de palavras escritas"
Intervenientes: Bruno Santos, Teresa Tudela, Jorge Velhote, Maria Estela Guedes, Rita Grácio, José Ribeiro Marto, Torquato da Luz. Moderador: Silvestre Raposo.

Homenagem a Pedro Tamen.
Conferência por Maria Sameiro Barroso. Leitura de poemas por Paulo Moreira.

07 julho, 2010

tardes de verão


Photobucket




As tardes quentes de verão repousam em árvores
que fazem sombra ao terraço.
Silenciosas, são lugares de memórias;
aqui sentada, como se pudesse salvar o meu próprio coração
contemplo a solidão da gata escondida entre dois vasos.
O voo da borboleta geometriza o espaço,
não se ouve mais nada.

Meu pai,que se foi embora,teria regressado com dois lagos nos olhos.





maria azenha



04 julho, 2010

Prémio MAC`2010 Hilário Teixeira Lopes - Maria João Franco

Destinado a distinguir o artista cuja obra se insira num campo de intervenções exemplares, ao nível da qualidade e inovação, destacando-se pela excelência da criação artística, o Prémio MAC`Hilário Teixeira Lopes já se tornou familiar e muito ambicionado nesta festa.
Este ano, todos os artistas que expuseram individualmente no MAC estiveram sujeitos à avaliação do Mestre, mas só um pôde alcançar tão nobre distinção. Passamos então a palavra ao Mestre Hilário Teixeira Lopes que irá proceder à entrega do Prémio homónimo.



MAC'2010 Colaboração e Divulgação Cultural
MARIA JOÃO FRANCO



Merece-nos especial destaque o MAC'2010 Colaboração e Divulgação Cultural, atribuído, este ano, a uma personalidade multifacetada, que alia às inúmeras funções que desempenha enquanto pintora, poeta, crítica e ensaísta, uma disponibilidade incansável para nos auxiliar em inúmeras tarefas de divulgação e promoção cultural: MARIA JOÃO FRANCO.

ver mais em MAC - Movimento de Arte Contemporânea


in Maria João Franco - Artes Plásticas .Poemas

03 julho, 2010

IV Bienal de Poesia de SILVES - 8





Projecto Dansul, Leitura de Poesia e Dança do Crescente, Al-Mu'tamid e Ibn 'Ammar
(excertos de poemas)

28 junho, 2010

IV Bienal de Poesia de SILVES - 7




Apresentação do Livro de Poemas de Maria Azenha "de amor ardem os bosques"

19 junho, 2010

IV Bienal de Poesia de SILVES - 6




Há Festa nas Palavras! (...os dois anos da Biblioteca Municipal de Silves)

16 junho, 2010

IV Bienal de Poesia - 5º Capítulo



" Festa nas Palavras! (...os dois anos da Biblioteca Municipal de SILVES)

10 junho, 2010

AV ISUAL



Os Olhos que o nosso olhar não vê ,1980



Um mouro da Índia dizia que as armas eram o coração dos homens ,1979



Desbravando os caminhos do texto ,1980


Afogado na cultura ,1980
Fernando Aguiar ,in Contrário (O) do Tempo



IV Bienal de Poesia de Silves

oferenda


o beijo


poema plural

Maria João Franco ,in Maria João Franco ,artes plásticas ;poemas


o chão da minha casa está cheio de pó,
parece o meu coração.
todos os dias me dispo e ajoelho,
as minhas mãos esfregam tábua por tábua,
palavra por palavra.
há bichos de pernas minúsculas,
ou outros, mais infelizes,
que não conseguem fugir.
há uns que correm no meu corpo,
e entram para dentro, e
fazem ninho. houve um bicho que
engoliu um anel e se escondeu.
todos os dias o procurei,
corri pelo chão da casa
como um animal sem faro.
até que as minhas unhas apodreceram.
a esta hora, chorei,
o ouro já deve ter derretido.


escrito por alice macedo campos ,in Tradução (A) da Memória
direitos de autor eric fischl

Poesia // Jorge Velhote

Piazza S. Marco


A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar, outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos, a navalha chamuscada.

Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres, pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.

Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo, o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como
em Murano a família Barelli?


Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?





jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986 ,in falso lugar

[tempo de pedras em tempo de folhas] .Faixa de Gaza .A estultícia do homem




será possível inverter o decurso da demência?
destecê.la como se um emaranhado de moléculas
balouçasse à deriva no seu interior?
delírio! - apregoam os analistas
- o vazio torna.se um buraco
de onde saem figuras informes
prontas
a oprimir os derradeiros resquícios da humanidade
é im possível deter o corrimento fluído dos corpos que
se volatizam em sangue
bruto
seco
na barbárie de um compromisso fratricida
a morte alastra.se
absurda -
ninguém é inocente
- os abutres do nada sobrevoam os campos
prontos a plantar obuses e
o ódio
floresce a apocalíptica infâmia onde se apagam os passos -
a areia transformada em escamas de fogo ou
pedaços de gente traduzida em
alvos
reduz.se a um silêncio agonizante ou
às palavras incapazes de preencher no vazio
a estultícia do HOMEM

.....................................predador



-steve mccurry.

gabriela rocha martins ,in .cante.chão.

IV Bienal de Poesia - 4º Capítulo




Conferência por Luís Serrano " 15 anos depois...Fernando Assis Pacheco"
Leitura de poemas por Inês Ramos

08 junho, 2010

IV Bienal de Poesia - 3º Capítulo




(D)escrever... O Poema Plural
Concerto Acústico e tertúlia com Vera Mantero.
No acordeão Paulo Pires

06 junho, 2010

IV Bienal de Poesia - 2º Capítulo





Mesa Redonda " Do acto de criação à edição"
Encontro de escritores sobre o signo de PoemaPlural na cidade medieva de Silves

perguntas




folha transparente




( “perguntas são quartos fechados como livros escritos em idioma estrangeiro.”- Rilke )




Como contemplar a árvore?
Como fitar o sol?
Como enterrar uma folha
no coração?




maria azenha in "paisagens textuais"






05 junho, 2010

Debate «Desejo e Prazer do Texto". Convento dos Frades, Trancoso, 28.05. 2010*


REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

Nova Série 2010 Número 04


O texto que Portugal dá a ler neste momento, ao mundo e não apenas aos portugueses, e ainda menos só aos escritores, é um texto de desprazer. Por isso mudo de canal no momento em que no telejornal se fala da crise, dos impostos, dos sacrifícios que precisamos de fazer, como se toda a nossa vida de poetas não tivesse sido um calvário.

Nunca houve muitas editoras dispostas a publicar poesia, quando a poesia é quantitativamente a mais importante literatura que se escreve em Portugal, e aquela que conta com os mais prestigiosos escritores. Hoje em dia, quem o não sabe?, só por excepção algum poeta é publicado em regime natural. A norma, mesmo quando existe chancela de uma editora, é a edição de autor. Escusado dizer que nós, poetas, nos lemos a nós mesmos, em circuito fechado, pois os livros de poesia, sendo edições de autor, consequentemente sem distribuidora, não chegam às livrarias.

Pergunto eu então: como se explica que os poetas, carregando os livros às costas como a cruz levada ao Calvário, persistam em manter-se como a população culturalmente mais activa neste país, e aquela em que levedam as obras que mais prestígio intelectual conferem a Portugal e à língua portuguesa?



Somos masoquistas ou existem outras explicações para o nosso comportamento produtor e divulgador da poesia em bienais como a de Silves, festivais como o de Foz Côa, filós como os desencadeados pelo Alberto Miranda, e centenas de outras acções de menor porte?

Não somos masoquistas, sim profunda e inquebrantavelmente criadores de cultura. Só somos mártires dela no mundo presencial, aquele que exige obras em papel impresso.

Tenho uma alternativa para vos apresentar. O livro é apenas um objecto tridimensional em matéria biodegradável. Os livros impressos em papel terão de acabar mais dia menos dia, dado o impacto pernicioso na biosfera com a destruição da floresta. Toda a tendência actual vai no sentido de substituir o suporte de papel pelo suporte electrónico.

Então o meu desejo é apresentar-vos uma alternativa de prazer do texto no mundo virtual.

Sou, como sabeis, uma pioneira da edição na Internet. Venho escrevendo no céu, metaforicamente falando, há uns doze anos ou mais. Hoje em dia mantenho um site muito poderoso, o TriploV, que festejou no passado dia 25 o seu nono aniversário. Publiquei, com os parabéns aos triplovnautas, alguma informação e imagens dos programas de estatística.

Em resultado, recebi mensagens de congratulações, entre elas um e-mail de Nicolau Saião, um dos escritores que mais assiduamente publicam no TriploV. Vou citar a primeira parte:

Caros confrades

Volto hoje ao v/ convívio, tal como farei até que o armazém se esgote, nas segundas, quartas e sextas.

Começo por umas nótulas a meu ver significativas:

- Congratulo-me (creio que na v/ companhia) pelo 9º Aniversário do TriploV, página cultural que, dirigida por Maria Estela Guedes e uma equipa de especialistas, estabeleceu já uma estatura singular neste país a que alguns tentam retirar as graças do solo.

Com efeito, saber-se que em média ele é lido por 6 mil pessoas diariamente (não é gralha) e que por exemplo em Novembro teve uma audiência mensal de quase 200 mil, é algo que nos comunica uma confortável sensação de alegria.

Por estudos competentes efectuados tem-se conhecimento de que aquilo que foi designado por cortesãos, que fundamentam o controle e o abuso, cirandam aí pela sociedade prontos a fazer-nos tropeçar. O TriploV, a meu ver, constitui uma sólida barreira contra isso e, mais ainda, uma proposta íntegra de debate e humanização.

É um facto: o TriploV, em termos de impacto na Rede, ocupa um lugar entre a Biblioteca Nacional de Lisboa e o Instituto Camões.

São três instâncias de cultura primacialmente em língua portuguesa, que me despertam desejos e mesmo vorazes apetites de textos, os vossos. Agrada-me sobretudo a proximidade da Biblioteca Nacional, porque trabalho o TriploV como tal – ele é uma biblioteca. Foi a minha profissão durante anos a fio: bibliotecária. Por isso, não obstante a especialização em Zoologia, estou familiarizada com a Babel de textos das mais várias têmperas, formas e origens. Dá-me gozo a mistura, essa transgressão das normas de etiqueta que encontramos em qualquer biblioteca. O Manuel Santos, meu colega da ainda mais especializada biblioteca da Botânica, na Politécnica, lembrava sempre que na dele não havia só obras sobre plantas, quem quisesse também se podia regalar com livros de nudismo.

Foi uma excursão até aos recantos eróticos da literatura científica, a lembrarem o que escreveu Roland Barthes em «O Prazer do Texto», livro que homenageamos neste debate: O prazer do texto – escreveu ele nesse para nós revolucionário ano de 1975 - é o momento em que o meu corpo vai seguir as suas próprias ideias – pois o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu.

Com o prazer de contemplar livros de nudismo numa biblioteca de Botânica termino a lista de estímulos para o debate. Umberto Eco falaria do prazer ou mesmo da fruição das listas, que também são textos que dão gozo, por isso só mais um preliminar, só mais uma pergunta: porque é que os escritores portugueses ainda são tão canhestros a lidarem com a Internet, ou porque é que não aprendem a usar o computador?

Certos escritores mandam-me os poemas manuscritos, selados em carta do correio pedestre... Neste ponto da evolução, se o escritor quer ser publicado, o modo como o faz até parece uma falta de respeito, pois exige que eu recue, recue no tempo, a ponto de dizer «dactilografe»... Ou não concordam que é uma falta de respeito tratarem-me como dactilógrafa?

Este atraso coloca-nos em desvantagem perante países muito mais evoluídos no manejo das novas tecnologias, como o Brasil.

Claro que o Brasil tem para cima de 190 milhões de habitantes, por isso muito mais escritores que Portugal, e muito mais escritores com competências elevadas no manejo das novas tecnologias. Não espanta assim que seja o Brasil o país que mais lê o TriploV. Antes de o Luís Reis ter pegado no blog do site, Portugal estava em quarto lugar na lista de países que constituem a nossa audiência. Desde que ele passou a publicar em quantidade notícias sobre livros, teatro e outras acções culturais, Portugal passou para segundo lugar.

Estou contente, a estatística do site é um texto de prazer, mas lá vai a inevitável segunda e última pergunta: porque é que os escritores portugueses, especialmente poetas, que por triste fado não têm editores, não se habituam a colaborar com o TriploV, enviando os seus textos para publicação em linha?

Britiande, 26 de Maio de 2010

_______________________________________________________

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.

_____________________________________________________

*Participação na Mostra de Arte Contemporânea do Côa e Douro Superior.

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL



descendo ao mar




no verão
quando as mulheres transportam nos cabelos
uma febre de madressilvas
incide sob as suas ancas
uma sede de vogais para pronunciar o mar.
são mulheres que vêm de longe
do lado da montanha
que guardou a grande ilusão dos verbos.

carregam poemas abandonados
a meio da noite quando os marinheiro mudam o rumo das velas
a cumprir o destino das sereias.
desfazem o olhar vertical dos naufrágios à beira rio
a orar para um céu mais perto.
incendeiam os ombros com os filhos do sol
e perturbam-se na visão integral dos búzios.


estremecem: o coração lavrado de algas.

depois ficam à espera
suspensas
com substantivos indizíveis
na funda boca dos abismos.


luísa henriques
Aveiro junho de 2010
t: v. sk

04 junho, 2010

Poema Plural - 1º Capítulo


Poesia e Corpo Pensante/Movimento




Primeiro capítulo da série possível de videomontagens sobre a Bienal de Poesia de Silves 2010.
Radiografia visual de "Poesia e Corpo Pensante/Movimento com Vera Mantero.

31 maio, 2010

começar o poema de uma maneira diferente

.
este é o mar.
antecedido pela areia inconstante
tornando-se mais fiel
à medida que se aproxima das águas
deste. deste que é o mar.
.
picotado por madeiras curtas
e cordas grossas
labirintos desenhados / para os peregrinos de dunas
caminhadas
desesperos a superar
desgostos para sofrer
desejos por conhecer
dores de amores tidos e per
didos
este é o mar.
.
alisado à beira-terra pelo rodo
das ondas. brancas.
desalinhado, por sua vez, pela elipse
das mesmas ondas. densas.
habitado pela ignorância humana
dos plásticos aos preservativos
sujos
habituado — até quando? —
ao desconsolo e ao desrespeito
.

este é o mar.
.

mundo de seres cromáticos guardadores do silêncio
fundos de seres com asas membranas e fios de luz
casa de plantas mágicas de ostras raras / deuses e fadas
que por respeito ao lastro de águas
devêm sereias, tágides, hárpias, tritões ou ninfas.
.
.
.
este é o mar da consolação do olhar e da emoção.
.

este é o reconforto para pacientes cascos nos duros invernos.
.
este é o mar da diversão que vê nascer
quando o sol espreita
bolas e ringues e cordas e tudo o que faz o saltar,
a brincadeira.
.
este é o mar da descoberta dos seios e receios mais escondidos.
.
este é o mar da sedução
onde se depositam os primeiros
beijos de paixão.
.
.
.

este é o mar.
.
calmo e dançante.
calando, rugindo, silvando.
.
este é.
o mar.
azul.
.
.
.
maria toscano
Figueira da Foz, snack-bar marisqueira "Johnny Ringo"
15 Maio / 2010
.

26 maio, 2010

custa muito ver o pai chorar

.
.
.
custa muito ver chorar o pai
.
.
.
quando chegavas das comissões /
— dizíamos: das colónias, do ultramar; dizemos: da Guerra Colonial — /
quando chegavas/
antes, vinha sempre um telegrama/
branco /
a confirmar a chegada/
do barco e/
a informar sobre o cais/ onde desembarcavas/
e / antes/ também vinha sempre um aerograma/
(amarelinho ou verdinho ou azul turquesa-clarinho) /
onde nos anunciavas que estavas bem (há 15 dias! que era o tempo da viagem do barco)/
e que acabavas a comissão /
no dia x/
pelo que já não nos enviavas mais aerogramas.
.
.
.
esses dias — os do último aerograma — iniciavam os rituais de renascimento de todas nós/
e deitávamos mãos à limpeza e embelezamento/
da casa.
.
.
.
cada uma de nós/
— cada uma com diferentes mãos de diferentes habilidades e tamanhos —/
esfregava os tacos com palha-de-aço/
os tachos e pratos amarelos de família (os de estanho não me lembro agora como os políamos) com esfregão de esparto e areia /
ou, mais tarde, /
com o produto maravilhoso, a sularine, que vinha numa garrafinha de lata dourada onde sobressaía um coração verde e vermelho, patriótico pois, atravessado por uma seta dourada./
.
.
.
a sularine poupava-nos /
algumas dores /
de músculos (nunca assumidas):/
'o pai vai regressar! o pai vai regressar!' /
.
.
.
cada uma de nós/
com diferentes tamanhos de mãos — com as nossas 6 mãos — /
 tirávamos os cortinados das sanefas/
lavávamos, /
à mão, no tanque, /
os cortinados/
encerávamos, à mão, as sanefas/
e o chão /
entretanto já limpo.
.
.
.
cada uma de nós/
com as nossas 6 milagrosas mãos/
tirávamos a loiça toda dos armários/
e lavávamo-la/
à mão/
no lava-loiça de uma torneira/
só /
de água fria. /
antes, as panelas e as cafeteiras de alumínio, /
as maiores, /
eram cheias de água e /
postas ao lume/
até que fervesse/
para termos água quente que se misturava, no lava-loiça, /
à água fria.
aliás, nem era mesmo no lava-loiça:/
havia 3 alguidares: /
um, para "fazer a água" da lavagem, com detergente com grãos azuis que desciam de uma embalagem de cartão, cada vez mais húmida, com o uso/
o outro, para as águas de enxaguar e o outro/
era onde se ia pondo a louçada a escorrer, pois o escorredor depressa ficava a abarrotar.
.
.
.
com as nossa saudosas 6 mãos/
limpávamos com panos de louça/
que se sucediam/
vencidos pelo encharcanço/
de tanta louça húmida que havia que limpar e secar até brilhar/
e depressa/
para, por sua vez, caber outra tanta — lavada /
e enxaguada em várias águas —/
a escorrer.
.
.
.
os alguidares tinham começado por ser barro/
de vários tamanhos/
em tons de castanho e/
com flores alentejanas pintadas. /
depois, à medida que o verniz /
saltava ou que se rachavam e partiam, passaram a ser /
de zinco /
cinzentos /
tristes. /
mas os mais modernos/
eram os mais garridos; de plástico vermelho/ creio.
.
.
.
quando chegavas da comissão/
as nossas 6 mãos obedientes ao estado novo /
aos medos e à cartilha maternal /
levantavam e sacudiam tapetes/
colchas/
passadeiras carpetes e /
todo o tipo de abafos. /
bem que as batíamos, às carpetes!/
ou, se dava, bem que os lavávamos. /
havia uns rolinhos de madeira /
com uns grampozitos nas extremidades/
próprios/ para segurar as passadeiras /
na escada da entrada. também esses pauzinhos eram encerados/
pelas nossas 6 carentes mãos.
.
.
.
penso, agora, /
como a relação com estes elementos — água, lume, madeira e pele — /
nos ajudaria na espera.
.
.
.
quando regressavas vivo de uma comissão/
cozinhavam-se pratos /
e sobremesas /
apropriados para o teu regresso/
(em casa de remediados/
havia que planear bem os gastos)./
.
.
.
tenho a certeza de que nos trazias /
prendinhas/
a todas /
mas, agora, /
desculpa lá! — /
não me recordo de quais. /
porque o teu abraço a nós as três/
e às nossas 6 mãos mais crescidas /
era tudo o que queríamos/
e não esqueço.
.
.
.
quando chegavas da comissão. /
de uma vez, recordo: /
era época de Natal /
fomos, só nós os dois/
ao musgo/
para o presépio. /
nesse ano/ ainda não andaria na escola./
nesse ano/
deste-me a tua mão /
forte/
e ajudaste-me a subir ladeirinhas caminhitos e passagens /
com lama e folhagem/
que nos meus medos /
de gaiata eram precipícios /
tenebrosos./
mas ali ia a tua mão/
forte e meiga/
a guiar-me e a amparar-me. /
voltámos dois perfeitos cúmplices /
com os sapatos encharcados/
os pés molhados ( 'óh, óh! então nã é que ainda se constipam? para quê tanto musgo?' ) /
mas com uma escolha e um carregamento de musgo /
invejáveis para qualquer um./
.
naquela época./
.
.
.
um homem também chora — digo-o frequentemente./
 e sinto-o/
revoltada e indignada contra essa mentira/
deslavada/
da mulher sensível-burra/
e do homem só razão-bruta.
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nesse ano, /
pai, /
deste-me a tua mão /
forte e terna.
.
.
.
noutras vezes, pai.
.
.
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sempre que saía contigo, pai:/
dávas-me a tua mão/
forte e terna/
e ajudávas-me. /
ensinavas-me a travessia de ruas, multidão, trânsito e vida.
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percebe-se, agora, porque é que
custa muito
ver
o nosso pai
a chorar?
.
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maria toscano.
Coimbra, Galerias santa Clara
23 Maio/2010.
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estórias de um cão que fala (III)


li há dias numa folha de jornal que quase levantava voo do chão nas traseiras da casa uma frase de um filósofo sim porque é lá que eu consigo conhecer os filósofos que são uma espécie de poetas sem versos e "a vida só se pode tornar arte quando primeiro se tornar trabalho"... mas com tantos desempregados que o meu dono diz que há na classe média e são esses que estão a complicar tudo na função pudica eu não percebo nada disso só sei que quase todos usam óculos alguns por intervalos dão aulas outros arrumados numa classe mais pequena com tendência a aumentar atravessam o Tejo a nado depois os mais danados esgravatam o céu vão a fatimah por causa de alguns poemas do alberto caeiro. em tempo de crise até o céu é mais caro se eu fosse político havia de implementar com a ajuda do nosso senhor das finanças um imposto e uma taxa para os que colocassem uma escada no terreiro do paço em público aplicava-lhes uma penitência com retroactivos toda a noite gosto tanto deles só não gosto que limpem a cidade e não deixem os restos de comida nos caixotes de lixo assim acabavam de vez com os mendigos sabiam? “ah larmes! vous n'as rien a dire?” sou um cão um cão do lixo trago trapos de nuvens no corpo e na boca que não caíram do céu a minha doença é fingir que não sou um cão a sério

é estranho ter que controlar o que se sente


Maria Azenha,
Maio de 2010, in Paisagens Textuais

A Caminho de Silves



Em toda a Europa os anfíbios (rãs, sapos, salamandras, tritões) estão a desaparecer. Ocupamos com casas e plantações de batata os seus nichos, poluímos os regatos e charcos, eles ficam sem lugar para viver.
É lamentável.


O conto em baixo, «A caminho de Silves», foi desencadeado pela morte súbita de um passageiro que ia connosco no comboio, no dia anterior à abertura da Bienal. Há quem suporte mal a ideia da morte, falar-se da morte é assunto tristonho. Eu acho o tema rico, só será mórbido se as nossas ideias forem mórbidas. O que me incomoda na minha morte é o transtorno que vai causar a quem tiver de me enterrar, e tal. Peço desculpa antecipadamente. Espero que haja dinheiro na minha conta para o funeral.


Por falar nisso, e bem sei que não deixo elos lógicos à vista, estou a desfazer-me dos meus livros. Se alguém estiver interessado, fale. A seguir serão os quadros. Preciso de me libertar do jugo dos haveres, que são poucos, pouquíssimos, mas vão transtornar muito quem não sabe o que são, para que servem, etc..


Não penso morrer já, nada no horizonte anuncia tail eventualidade, não, mas preciso de me preparar, quero libertar-me para partir, pegar só numa maleta de rodinhas e - quem sabe? - descobrir por aí uma casita de pescadores onde possa passar uns meses, de Inverno, se possível, a escrever um livro. Um livro qualquer, não interessa, interessa é a tarefa de escrever um livro à beira-mar, de Inverno, com a ventania a fustigar o telhado e as vagas a partirem-se com fragor de encontro à rocha em cima da qual estará a casita comigo dentro, a escrever o livro.


Se alguém souber de uma para alugar, barata... Mas primeiro tenho de me desfazer de uma quantidade de tralhas para poder partir muito elástica e levezinha.


**********
*****
Não me sinto bem. Um enjoo, uma falta de ar, um não sei quê estranho que não consigo determinar. Não devia ter empreendido esta viagem, mas ficar em casa só porque não ando na melhor forma? Nem pensar, quero participar no Encontro de Poesia. Acontecimento internacional, vou dizer poemas e debater o estatuto do poeta na sociedade contemporânea, numa das mesas redondas. Não podia falhar. Uma anemia não é nada de extraordinário. Nada, ninguém morre por causa de uma anemia, mas, se tiver de partir, olha, é só uma sequência natural das coisas, em viagem já eu vou. E de viagem venho, de Espanha, onde estive na VI Bienal de Poesia Andaluza... Os poetas estão sempre em movimento, são eles que asseguram a dinâmica necessária à vida cultural de um país. Com poucos apoios, só algumas Câmaras são receptivas e lá vão ao menos patrocinando o alojamento e as refeições... Salário, nem pensar! A actividade de poeta não é reconhecida como trabalho, todos os autores são pagos, excepto os poetas... Esquecem-nos, sorriem, brincam, troçam de nós, ah!, anda a escrever um livro de poemas? Sempre está entretido... Não nos levam a sério, escrever poesia não é trabalho, é entretenimento... Por isso não nos pagam, não nos publicam, e troçam... Mas quem leva alguma colher de cultura à boca das cidades de província, quem garante que as cidades, mesmo importantes, não morrem de anemia das Letras? Os ficcionistas? Os ensaístas? Não, esses fazem um congresso de quando em vez, nas grandes capitais ou nos mais famosos centros turísticos, mas não caminham como nós de castelo em castelo, mochila às costas, como os trovadores na Idade Média, para levarem às terras mais longínquas o pão da poesia...

Sinto-me cada vez mais fraco. Vou para longe e deixo para trás a Sylvia com um bebé de quinze meses. E os meus livros, quem tomará conta deles? Se calhar, atiram-nos para o lixo... E os cadernos com tanto poema para rever, grupos inteiros deles que já se organizam em livros... E a mochila que tenho levado para Amsterdam? O problema nem é atirarem-na para o lixo, sim deixar eu atrás de mim tanto motivo de preocupação para quem se ocupar dos meus despojos... Arrumar tudo... Aliás, tudo está naturalmente onde poderia estar, não há assim tanto espaço nem móvel na casa... Se houvesse estantes, os livros escusavam de andar às voltas em cima da cama... Alguém vai deitar mãos à cabeça ao ver livros e papéis na cozinha, na casa-de-banho...

Morrer traz incómodos aos vivos, bem queria evitá-los. E tenho evitado, na verdade: além dos livros, nada mais possuo, fui-me libertando a pouco e pouco do supérfluo. Só os livros são essenciais. Não devíamos possuir bens, para podermos partir sem carga... A carga dessa carga, preciso de esvaziar as gavetas, deitar fora papéis que só servirão para causar perplexidade a quem os ler... Mas, meu Deus, morrer aqui, a caminho de Silves, essa cidade onde viveram tão belos poetas árabes, e que me garantem inebriar com o perfume das flores de laranjeira? Não posso morrer aqui, ainda vamos no Alentejo, segundo o médico sentado à minha frente. Percebi isso, fala-se em inglês, a carruagem vai cheia de turistas a caminho da praia.

Deixa ver o que tenho na carteira... Passaporte europeu, com local de nascimento, na Holanda... Nem morada nem telefone... Uns cartões de visita, este é do Juan Molinos, escritor da Andaluzia... Passei estes últimos quinze dias em casa dele... Se morro aqui, vai ser um problema para os portugueses contactarem os meus familiares na Holanda... Pegam no telemóvel e desatam a ligar para todos os contactos, e quem, na lista, responderá numa língua minimamente acessível como o inglês?

Ai, sinto-me mesmo mal, uma fraqueza... Suores frios... Nada na carteira que permita a alguém avisar a minha família... Só por aqui vejo uns papéis com o endereço do Juan Molinos... E que família? A Sylvia? Não somos casados, ela é só a mãe do meu filho. Foi um acidente, como posso eu garantir a criação do Conrad? Adoro o Conrad, é a minha cara, mas sou um... Sou o quê? Como é que a sociedade me classifica? Um irresponsável? Um desempregado crónico? Um vagabundo? Um marginal? Um mendigo? Aceita a sociedade que eu seja um poeta?

Tenho comido tão pouco, custa-me sobrecarregar a Sylvia. Vamos falar com a claridade absoluta dos teus poemas, Clovis: passas fome. Por isso o médico te diagnosticou anemia. Andas mais magro que um cão vadio, Clovis, a pele amarelada, e cheiro a não sei quê adocicado, Clovis. Sinto-me mal disposto... Precisava de levar alguma comida à boca, mas fico sem dinheiro se vou ao bar, e a carruagem do bar é das primeiras, não a conseguirei alcançar...

Oiço zumbidos dentro dos ouvidos, as pessoas perguntaram alguma coisa mas não compreendi... Está tanto calor e custa-me respirar, vou à casa-de-banho...

Não convém fechar a porta, era um berbicacho terem de a arrombar se morresse trancado aqui dentro... Que ninguém morre de anemia, mas lá que me sinto fraco, sinto... E cheio de calor, vou ao menos tirar as peúgas... O comboio anda aos tombos, roda à volta de mim numa zoeira... Quem serão estas pessoas que me amparam e me levam quase no ar para fora do WC? Alguém esperava que eu saísse, uma senhora de rosto redondo e olhos pequenos. Sorriu, não percebeu que sou um poeta de palavras fortes mas de pernas fracas...

É o casal de médicos que ia comigo na carruagem... Mandaram parar o comboio por minha causa? Oh, não esperava que me atribuíssem assim tanta importância... A mão de alguém mexeu-me nos bolsos, tiraram-me a carteira... Não, não foi para me roubarem, o médico folheia os meus papéis e um homem fardado escreve numa agenda...

- Do you live in Spain? - pergunta o médico. E mede-me as pulsações pelo relógio, enquanto eu olho para o céu quase branco, tanta é a luz, e tanta a efervescência no meu sangue... Estou deitado no banco de pedra daquela estação de nome tão maravilhoso, que nome era? Fixei, eu fixei o nome da estação, apesar de a língua ter um sabor tão estranho: Santa Clara Sabóia... Santa... O céu é um sorvedouro branco, sinto-me atraído por ele, e mergulho, mergulho num torvelinho de cintilações prateadas... Reajo, tenho de me levantar e levanto-me, o médico é uma projecção de sombra à minha frente, não lhe distingo as feições, só a voz distante, de enxame de abelhas:

- Do you live in Spain? - quero responder, sorrio antes da resposta, erguido a mais do que a altura dele, olho-o de cima, sem sobranceria mas com o orgulho dos bons... Sou um grande poeta, todos o sabem... Não queria causar aborrecimentos a ninguém, mas é verdade que o comboio está parado por minha causa, há tanto tempo, tanto tempo... Mais de vinte minutos, comenta alguém... Percebo que chamaram uma ambulância, o médico continua a falar comigo, vai chegar a ambulância, promete, os passageiros do comboio sairam para o bosque, não posso dizer que sairam para a rua, não é verdade? Isto é um lugar de fronteira, nem cidade nem campo, pronto, sairam para a poeira, outros espreitam por cima dos ombros de quem está à frente para me observarem e então, numa fração de corisco, uma faísca atravessa-me e sinto-me desabar no chão, estou morto, o médico ajoelha, põe-me a mão sobre o coração e com a outra faz força, fica ali tanto tempo a dar massagens ao coração, coitado, deve estar cansado, olho de cima para aquela cena, um grupo de pessoas chocadas, há uma, dentro do comboio, que solta gargalhadas, decerto em reação nervosa, está roxo, que quer isso dizer?, que não vale a pena, é só por descargo de consciência que o médico insiste na massagem cardíaca, o homem está morto há mais de três minutos, oiço, lá em cima, no céu de almofada de penas, lavado, claro, tão nítido, e depois a música alarmada da ambulância que chega, e há-de levar-me, só incómodos para os portugueses, desculpe, sorry, sorry, peço perdão por ter morrido, só queria participar no Encontro de Poesia, não era desejo meu causar-vos tanto atraso e tanta perturbação...

Maria Estela Guedes ,in Revista Triplov e Poema Plural

24 maio, 2010

A Pele da Terra




Subsídio para um poema visual.
clicar na imagem

21 maio, 2010

o caçador.cativo *// à laia de resposta

-ao joão rasteiro.


haviam.se em vão procurado nas cidades

percorreu continentes e
quando desistiu
encontrou.se solto no ritmo lento
de uma valsa
dançada em contra.mão

desintegrado

sentiu as ondulações das searas
que searou em dança lenta e
regressou estranho às recordações de antanho
antanho era a linguagem de seus avós

cresceu junto à terra gretada
pela fome das manhãs abertas e
desde cedo sentiu a boca
apagada pelo desejo de terra pão
fustigada pelo vento

pulou a cerca
construída sobre os dias
como as copas das árvores que
costumava ouvir à noite entregue
aos seus passos de caçador furtivo
numa dessas deambulações encontrou.a
solta
aproximou.se e ela a medo levantou as asas
no voo ferido




soltou os cães e
ficou suspenso à dança do animal
em voo
primeiro raso
depois mais alto
arribando em direcção ao mundo
em tons de mel
engrossou o batimento das asas
ao som da presa
o homem / caçador / cativo
daquele voar
enquanto filados
os cães esperaram a voz de comando

ele muito aquém da aventura
seguiu.lhe o volteio
o silêncio da terra foi o elo que os uniu

ele o caçador cativo
ela solta à migração
o desejo
deixou.os sob um manto de horas
semeadas a esmo
que estranho aquele olhar que
se projectou na mira do caçador
tornando.a vulnerável


o cúmplice
jogo do agarra e foge
ele o efabulador
regressou caçador
ela de asas fechadas
pronta a deixar.se prender
olhou.o
ele viu.se
projectado no olhar em flash

uma ave / dona




-bogdan zwir.
_______________________________________

*gabriela rocha martins ,in , "Os dias Do Amor. Um poema para cada dia do ano", ed. Ministério dos Livros, 2009

Arquitectura Revisitada



Á gabriela rocha martins


................,No céu
uma intempérie
como só a intempérie do amor.

Pela arquitectura da carne
a sua cicatriz era a taifa acesa
o inaudível.

Porém para me mostrar a flor
ouso pensar que o fogo de I´timad
apazigua o Sul:

- Não existes
Silves lá no remanso do rio
sem as vestes escravas do sagrado.

Diria que era I´timad
a indivisível luz
e que é o verbo primordial da aurora.

Consigo o desabrochar da sílaba
ciclos do alfabeto do tempo
cativos do alaúde:

- Incandescente, tão incandescente
como a melancolia do sémen
que outrora era lágrima
a chuva de Primavera aberta ao cio
de eternidade em eternidade
como um denso aroma, suave corpo.



João Rasteiro
8 de Maio de 2010

carta para o exílio



do que me escreves eu vejo a lua.
as palavras rondam um objecto insólito
crescem pêlo a pêlo das tuas órbitas.
fora do poema
jaz um cadáver com um véu de noiva,
o que é perfeitamente natural e honesto.
a entrada de um corpo em decomposição
carece de provas irrefutáveis.
não pode dizer-se simplesmente
entrou em decomposição,
porque o corpo pode ainda morrer.
de maneira que a noite deita-se a teu lado
e copulam livremente.
contudo,
a castração das fêmeas antes do primeiro cio
não resulta foneticamente.
repara.:
uma vaca a parir um filho
não sangra dos cotovelos.


alice macedo campos


o cilo menstrual da noite
edium editores, 2008

19 maio, 2010

como?

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como dizer?
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como encontrar verbo adjectivo nome?
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uma mera sí-la-ba cur-ta
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justa em tom cheiro e gesto
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certa. a desenhar teu voo alto
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de asa planante, águia sem fome?
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como?
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digo: como dizer como és?
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como dizer a forma verbal de teu ombro
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a conjugação do salto seguro do muro para o galho
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de vida que acalentas?
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como? digo eu: como dizer?
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como o desgosto amargo
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a farpa estática que guardas dentro de ti
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a flama inocente que provocas
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adiantas em resguardo ténue
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temeroso, receoso
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a flama de amor que avidamente
ateias
ateias e ateias?
.
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como te entregas?
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como, por entre os actos de mediação,
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te encontras com o brilho
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intacto
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com a virgem cor dos novos astros
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vagarosos eternos?
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como te recordas?
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como te dizes?
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como — meu amor que me não é — como amas?
.
.
.
.
como
te incendeias?
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maria toscano,
Coimbra, Café Santa Cruz, 13 Maio/ 2010
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