25 setembro, 2010

Para Carolina Beatriz Ângelo*

Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911), uma das primeiras médicas portuguesas e uma das impulsionadoras do Movimento Feminista, foi a primeira que praticou cirurgia e a primeira mulher a votar em Portugal. O novo Hospital de Loures vai ter o seu nome. Aqui fica a minha homenagem.





Nada vou dizer das tuas mãos, Carolina,
nem das bandeiras que ascendem nos gestos
em que a decisão é uma faca cirúrgica
a preceder a noite, o ser, a jangada ilesa,
a ousadia de um voto.
Lutaste.
Contra as serpentes vazias, acorrentadas
no país das sombras.
Combateste. Por ti, pela luz, pelo corpo íntegro,
juntando, uma a uma, as letras do universo
que encerra a palavra MULHER.

Talvez não soubesses que a vida é a palavra
com que a poesia define a flor das algas.
Talvez não soubesse que o amor é uma lua
vermelha, a morte uma cisterna salgada,
mas sabias que, em teus braços,
havia uma pluma leve,
no teu peito, uma ave canora,
e, nos teus olhos, uma rosa incendiada.

Nada, pois, vou dizer das tuas mãos,
Carolina,
nem da liberdade que flutua nos teus dedos.
Da noite, fizeste dia, à raiz, deste futuro.
Não mais, em casa, sufoca a génese
de fêmeas entranhas que gera sementes
maduras.

O vento consigo traz um cemitério de palavras.
Na tua boca, cada pedra é um dilúvio,
onde terminam velhas guerras.

Quando as novas rotinas se instalam,
dourado é o útero da terra.
Nas casas, nas ruas, nos sofridos hospitais,
o espaço, outrora interdito,
engendra novas quimeras.

Nada vou dizer de ti, Carolina,
nem do silêncio que urge,
quando as fontes são bandeiras,
onde brilham o sangue e a seda,
em becos, outrora escondidos,
com janelas para a rua.

Nada vou dizer de ti, Carolina, porque o sol
te pronuncia,
desde os tempos mais agrestes.
Os fluidos do mar ecoam em tuas essências
brancas de gardénias e violeta.
A noite é todo o corpo, dizes,
até que uma lâmpada secreta e pura
tudo venha iluminar.
A noite é mais que o leite que os mamilos
bebem, de manhã.
A noite é mais que o redondel de exílio
que os homens conceberam.

E bebo, com temor, o medo que ainda vivem
as mulheres de agora, pisadas, maltratadas.
Usam burka, no Afgnanistão,
sem direitos, nem auxílio.
Suicidam-se pelo fogo.
Queimam, numa agonia atroz,
o desespero que as corrói,
na sua pátria de exílio.
Pelo pesadelo morrem, sem ter o direito
à face, ao corpo, nem aos poros arejados
que é preciso libertar,
na noite, carrossel de exílio,
na morte, jardim de delírio,
no mundo onde os serem temem viver
o coração é cinza negra
que não os deixa despertar.

Por isso, é na sombra, que os poemas
se escrevem,
nos muros, nas fendas, onde as rosas
se insinuam em dolorosas flores de papel,
em ecos a lembrar ritos, sendas, laços,
rios que inundam o sangue,
nós que alimentam e enlaçam.

Como lembrar-te, mulher, política,
cirurgiã?
Como dizer-te, pomba, gladíolo,
vislumbre de luz, em jardim secreto?
O canto é novo, sempre novo.
Por ele vivo.
A ele respondo.
As águas escrevem-me,
quando as aves flutuam na manhã.



Maria do Sameiro Barroso


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* ( Nas Comemorações do Centenário da República ) - Poema publicado no catálogo da Exposição de Homenagem a Carolina Beatriz Ângelo, Intersecções dos sentidos, palavras, actos e imagens, Organização Dulce Helena Pires Borges, Museu da Guarda, 2010, p. 45. O poema foi precedido de um estudo de nossa autoria, intitulado Prolapsos Genitais — a Tese de Carolina, pp. 42-44.