O texto que Portugal dá a ler neste momento, ao mundo e não apenas aos portugueses, e ainda menos só aos escritores, é um texto de desprazer. Por isso mudo de canal no momento em que no telejornal se fala da crise, dos impostos, dos sacrifícios que precisamos de fazer, como se toda a nossa vida de poetas não tivesse sido um calvário.
Nunca houve muitas editoras dispostas a publicar poesia, quando a poesia é quantitativamente a mais importante literatura que se escreve em Portugal, e aquela que conta com os mais prestigiosos escritores. Hoje em dia, quem o não sabe?, só por excepção algum poeta é publicado em regime natural. A norma, mesmo quando existe chancela de uma editora, é a edição de autor. Escusado dizer que nós, poetas, nos lemos a nós mesmos, em circuito fechado, pois os livros de poesia, sendo edições de autor, consequentemente sem distribuidora, não chegam às livrarias.
Pergunto eu então: como se explica que os poetas, carregando os livros às costas como a cruz levada ao Calvário, persistam em manter-se como a população culturalmente mais activa neste país, e aquela em que levedam as obras que mais prestígio intelectual conferem a Portugal e à língua portuguesa?
Somos masoquistas ou existem outras explicações para o nosso comportamento produtor e divulgador da poesia em bienais como a de Silves, festivais como o de Foz Côa, filós como os desencadeados pelo Alberto Miranda, e centenas de outras acções de menor porte?
Não somos masoquistas, sim profunda e inquebrantavelmente criadores de cultura. Só somos mártires dela no mundo presencial, aquele que exige obras em papel impresso.
Tenho uma alternativa para vos apresentar. O livro é apenas um objecto tridimensional em matéria biodegradável. Os livros impressos em papel terão de acabar mais dia menos dia, dado o impacto pernicioso na biosfera com a destruição da floresta. Toda a tendência actual vai no sentido de substituir o suporte de papel pelo suporte electrónico.
Então o meu desejo é apresentar-vos uma alternativa de prazer do texto no mundo virtual.
Sou, como sabeis, uma pioneira da edição na Internet. Venho escrevendo no céu, metaforicamente falando, há uns doze anos ou mais. Hoje em dia mantenho um site muito poderoso, o TriploV, que festejou no passado dia 25 o seu nono aniversário. Publiquei, com os parabéns aos triplovnautas, alguma informação e imagens dos programas de estatística.
Em resultado, recebi mensagens de congratulações, entre elas um e-mail de Nicolau Saião, um dos escritores que mais assiduamente publicam no TriploV. Vou citar a primeira parte:
Caros confrades
Volto hoje ao v/ convívio, tal como farei até que o armazém se esgote, nas segundas, quartas e sextas.
Começo por umas nótulas a meu ver significativas:
- Congratulo-me (creio que na v/ companhia) pelo 9º Aniversário do TriploV, página cultural que, dirigida por Maria Estela Guedes e uma equipa de especialistas, estabeleceu já uma estatura singular neste país a que alguns tentam retirar as graças do solo.
Com efeito, saber-se que em média ele é lido por 6 mil pessoas diariamente (não é gralha) e que por exemplo em Novembro teve uma audiência mensal de quase 200 mil, é algo que nos comunica uma confortável sensação de alegria.
Por estudos competentes efectuados tem-se conhecimento de que aquilo que foi designado por cortesãos, que fundamentam o controle e o abuso, cirandam aí pela sociedade prontos a fazer-nos tropeçar. O TriploV, a meu ver, constitui uma sólida barreira contra isso e, mais ainda, uma proposta íntegra de debate e humanização.
É um facto: o TriploV, em termos de impacto na Rede, ocupa um lugar entre a Biblioteca Nacional de Lisboa e o Instituto Camões.
São três instâncias de cultura primacialmente em língua portuguesa, que me despertam desejos e mesmo vorazes apetites de textos, os vossos. Agrada-me sobretudo a proximidade da Biblioteca Nacional, porque trabalho o TriploV como tal – ele é uma biblioteca. Foi a minha profissão durante anos a fio: bibliotecária. Por isso, não obstante a especialização em Zoologia, estou familiarizada com a Babel de textos das mais várias têmperas, formas e origens. Dá-me gozo a mistura, essa transgressão das normas de etiqueta que encontramos em qualquer biblioteca. O Manuel Santos, meu colega da ainda mais especializada biblioteca da Botânica, na Politécnica, lembrava sempre que na dele não havia só obras sobre plantas, quem quisesse também se podia regalar com livros de nudismo.
Foi uma excursão até aos recantos eróticos da literatura científica, a lembrarem o que escreveu Roland Barthes em «O Prazer do Texto», livro que homenageamos neste debate: O prazer do texto – escreveu ele nesse para nós revolucionário ano de 1975 - é o momento em que o meu corpo vai seguir as suas próprias ideias – pois o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu.
Com o prazer de contemplar livros de nudismo numa biblioteca de Botânica termino a lista de estímulos para o debate. Umberto Eco falaria do prazer ou mesmo da fruição das listas, que também são textos que dão gozo, por isso só mais um preliminar, só mais uma pergunta: porque é que os escritores portugueses ainda são tão canhestros a lidarem com a Internet, ou porque é que não aprendem a usar o computador?
Certos escritores mandam-me os poemas manuscritos, selados em carta do correio pedestre... Neste ponto da evolução, se o escritor quer ser publicado, o modo como o faz até parece uma falta de respeito, pois exige que eu recue, recue no tempo, a ponto de dizer «dactilografe»... Ou não concordam que é uma falta de respeito tratarem-me como dactilógrafa?
Este atraso coloca-nos em desvantagem perante países muito mais evoluídos no manejo das novas tecnologias, como o Brasil.
Claro que o Brasil tem para cima de 190 milhões de habitantes, por isso muito mais escritores que Portugal, e muito mais escritores com competências elevadas no manejo das novas tecnologias. Não espanta assim que seja o Brasil o país que mais lê o TriploV. Antes de o Luís Reis ter pegado no blog do site, Portugal estava em quarto lugar na lista de países que constituem a nossa audiência. Desde que ele passou a publicar em quantidade notícias sobre livros, teatro e outras acções culturais, Portugal passou para segundo lugar.
Estou contente, a estatística do site é um texto de prazer, mas lá vai a inevitável segunda e última pergunta: porque é que os escritores portugueses, especialmente poetas, que por triste fado não têm editores, não se habituam a colaborar com o TriploV, enviando os seus textos para publicação em linha?
Britiande, 26 de Maio de 2010
_______________________________________________________
Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
_____________________________________________________
*Participação na Mostra de Arte Contemporânea do Côa e Douro Superior.
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL