Em toda a Europa os anfíbios (rãs, sapos, salamandras, tritões) estão a desaparecer. Ocupamos com casas e plantações de batata os seus nichos, poluímos os regatos e charcos, eles ficam sem lugar para viver.
É lamentável.
É lamentável.
O conto em baixo, «A caminho de Silves», foi desencadeado pela morte súbita de um passageiro que ia connosco no comboio, no dia anterior à abertura da Bienal. Há quem suporte mal a ideia da morte, falar-se da morte é assunto tristonho. Eu acho o tema rico, só será mórbido se as nossas ideias forem mórbidas. O que me incomoda na minha morte é o transtorno que vai causar a quem tiver de me enterrar, e tal. Peço desculpa antecipadamente. Espero que haja dinheiro na minha conta para o funeral.
Por falar nisso, e bem sei que não deixo elos lógicos à vista, estou a desfazer-me dos meus livros. Se alguém estiver interessado, fale. A seguir serão os quadros. Preciso de me libertar do jugo dos haveres, que são poucos, pouquíssimos, mas vão transtornar muito quem não sabe o que são, para que servem, etc..
Não penso morrer já, nada no horizonte anuncia tail eventualidade, não, mas preciso de me preparar, quero libertar-me para partir, pegar só numa maleta de rodinhas e - quem sabe? - descobrir por aí uma casita de pescadores onde possa passar uns meses, de Inverno, se possível, a escrever um livro. Um livro qualquer, não interessa, interessa é a tarefa de escrever um livro à beira-mar, de Inverno, com a ventania a fustigar o telhado e as vagas a partirem-se com fragor de encontro à rocha em cima da qual estará a casita comigo dentro, a escrever o livro.
Se alguém souber de uma para alugar, barata... Mas primeiro tenho de me desfazer de uma quantidade de tralhas para poder partir muito elástica e levezinha.
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Não me sinto bem. Um enjoo, uma falta de ar, um não sei quê estranho que não consigo determinar. Não devia ter empreendido esta viagem, mas ficar em casa só porque não ando na melhor forma? Nem pensar, quero participar no Encontro de Poesia. Acontecimento internacional, vou dizer poemas e debater o estatuto do poeta na sociedade contemporânea, numa das mesas redondas. Não podia falhar. Uma anemia não é nada de extraordinário. Nada, ninguém morre por causa de uma anemia, mas, se tiver de partir, olha, é só uma sequência natural das coisas, em viagem já eu vou. E de viagem venho, de Espanha, onde estive na VI Bienal de Poesia Andaluza... Os poetas estão sempre em movimento, são eles que asseguram a dinâmica necessária à vida cultural de um país. Com poucos apoios, só algumas Câmaras são receptivas e lá vão ao menos patrocinando o alojamento e as refeições... Salário, nem pensar! A actividade de poeta não é reconhecida como trabalho, todos os autores são pagos, excepto os poetas... Esquecem-nos, sorriem, brincam, troçam de nós, ah!, anda a escrever um livro de poemas? Sempre está entretido... Não nos levam a sério, escrever poesia não é trabalho, é entretenimento... Por isso não nos pagam, não nos publicam, e troçam... Mas quem leva alguma colher de cultura à boca das cidades de província, quem garante que as cidades, mesmo importantes, não morrem de anemia das Letras? Os ficcionistas? Os ensaístas? Não, esses fazem um congresso de quando em vez, nas grandes capitais ou nos mais famosos centros turísticos, mas não caminham como nós de castelo em castelo, mochila às costas, como os trovadores na Idade Média, para levarem às terras mais longínquas o pão da poesia...
Sinto-me cada vez mais fraco. Vou para longe e deixo para trás a Sylvia com um bebé de quinze meses. E os meus livros, quem tomará conta deles? Se calhar, atiram-nos para o lixo... E os cadernos com tanto poema para rever, grupos inteiros deles que já se organizam em livros... E a mochila que tenho levado para Amsterdam? O problema nem é atirarem-na para o lixo, sim deixar eu atrás de mim tanto motivo de preocupação para quem se ocupar dos meus despojos... Arrumar tudo... Aliás, tudo está naturalmente onde poderia estar, não há assim tanto espaço nem móvel na casa... Se houvesse estantes, os livros escusavam de andar às voltas em cima da cama... Alguém vai deitar mãos à cabeça ao ver livros e papéis na cozinha, na casa-de-banho...
Morrer traz incómodos aos vivos, bem queria evitá-los. E tenho evitado, na verdade: além dos livros, nada mais possuo, fui-me libertando a pouco e pouco do supérfluo. Só os livros são essenciais. Não devíamos possuir bens, para podermos partir sem carga... A carga dessa carga, preciso de esvaziar as gavetas, deitar fora papéis que só servirão para causar perplexidade a quem os ler... Mas, meu Deus, morrer aqui, a caminho de Silves, essa cidade onde viveram tão belos poetas árabes, e que me garantem inebriar com o perfume das flores de laranjeira? Não posso morrer aqui, ainda vamos no Alentejo, segundo o médico sentado à minha frente. Percebi isso, fala-se em inglês, a carruagem vai cheia de turistas a caminho da praia.
Deixa ver o que tenho na carteira... Passaporte europeu, com local de nascimento, na Holanda... Nem morada nem telefone... Uns cartões de visita, este é do Juan Molinos, escritor da Andaluzia... Passei estes últimos quinze dias em casa dele... Se morro aqui, vai ser um problema para os portugueses contactarem os meus familiares na Holanda... Pegam no telemóvel e desatam a ligar para todos os contactos, e quem, na lista, responderá numa língua minimamente acessível como o inglês?
Ai, sinto-me mesmo mal, uma fraqueza... Suores frios... Nada na carteira que permita a alguém avisar a minha família... Só por aqui vejo uns papéis com o endereço do Juan Molinos... E que família? A Sylvia? Não somos casados, ela é só a mãe do meu filho. Foi um acidente, como posso eu garantir a criação do Conrad? Adoro o Conrad, é a minha cara, mas sou um... Sou o quê? Como é que a sociedade me classifica? Um irresponsável? Um desempregado crónico? Um vagabundo? Um marginal? Um mendigo? Aceita a sociedade que eu seja um poeta?
Tenho comido tão pouco, custa-me sobrecarregar a Sylvia. Vamos falar com a claridade absoluta dos teus poemas, Clovis: passas fome. Por isso o médico te diagnosticou anemia. Andas mais magro que um cão vadio, Clovis, a pele amarelada, e cheiro a não sei quê adocicado, Clovis. Sinto-me mal disposto... Precisava de levar alguma comida à boca, mas fico sem dinheiro se vou ao bar, e a carruagem do bar é das primeiras, não a conseguirei alcançar...
Oiço zumbidos dentro dos ouvidos, as pessoas perguntaram alguma coisa mas não compreendi... Está tanto calor e custa-me respirar, vou à casa-de-banho...
Não convém fechar a porta, era um berbicacho terem de a arrombar se morresse trancado aqui dentro... Que ninguém morre de anemia, mas lá que me sinto fraco, sinto... E cheio de calor, vou ao menos tirar as peúgas... O comboio anda aos tombos, roda à volta de mim numa zoeira... Quem serão estas pessoas que me amparam e me levam quase no ar para fora do WC? Alguém esperava que eu saísse, uma senhora de rosto redondo e olhos pequenos. Sorriu, não percebeu que sou um poeta de palavras fortes mas de pernas fracas...
É o casal de médicos que ia comigo na carruagem... Mandaram parar o comboio por minha causa? Oh, não esperava que me atribuíssem assim tanta importância... A mão de alguém mexeu-me nos bolsos, tiraram-me a carteira... Não, não foi para me roubarem, o médico folheia os meus papéis e um homem fardado escreve numa agenda...
- Do you live in Spain? - pergunta o médico. E mede-me as pulsações pelo relógio, enquanto eu olho para o céu quase branco, tanta é a luz, e tanta a efervescência no meu sangue... Estou deitado no banco de pedra daquela estação de nome tão maravilhoso, que nome era? Fixei, eu fixei o nome da estação, apesar de a língua ter um sabor tão estranho: Santa Clara Sabóia... Santa... O céu é um sorvedouro branco, sinto-me atraído por ele, e mergulho, mergulho num torvelinho de cintilações prateadas... Reajo, tenho de me levantar e levanto-me, o médico é uma projecção de sombra à minha frente, não lhe distingo as feições, só a voz distante, de enxame de abelhas:
- Do you live in Spain? - quero responder, sorrio antes da resposta, erguido a mais do que a altura dele, olho-o de cima, sem sobranceria mas com o orgulho dos bons... Sou um grande poeta, todos o sabem... Não queria causar aborrecimentos a ninguém, mas é verdade que o comboio está parado por minha causa, há tanto tempo, tanto tempo... Mais de vinte minutos, comenta alguém... Percebo que chamaram uma ambulância, o médico continua a falar comigo, vai chegar a ambulância, promete, os passageiros do comboio sairam para o bosque, não posso dizer que sairam para a rua, não é verdade? Isto é um lugar de fronteira, nem cidade nem campo, pronto, sairam para a poeira, outros espreitam por cima dos ombros de quem está à frente para me observarem e então, numa fração de corisco, uma faísca atravessa-me e sinto-me desabar no chão, estou morto, o médico ajoelha, põe-me a mão sobre o coração e com a outra faz força, fica ali tanto tempo a dar massagens ao coração, coitado, deve estar cansado, olho de cima para aquela cena, um grupo de pessoas chocadas, há uma, dentro do comboio, que solta gargalhadas, decerto em reação nervosa, está roxo, que quer isso dizer?, que não vale a pena, é só por descargo de consciência que o médico insiste na massagem cardíaca, o homem está morto há mais de três minutos, oiço, lá em cima, no céu de almofada de penas, lavado, claro, tão nítido, e depois a música alarmada da ambulância que chega, e há-de levar-me, só incómodos para os portugueses, desculpe, sorry, sorry, peço perdão por ter morrido, só queria participar no Encontro de Poesia, não era desejo meu causar-vos tanto atraso e tanta perturbação...
Maria Estela Guedes ,in Revista Triplov e Poema Plural
Sinto-me cada vez mais fraco. Vou para longe e deixo para trás a Sylvia com um bebé de quinze meses. E os meus livros, quem tomará conta deles? Se calhar, atiram-nos para o lixo... E os cadernos com tanto poema para rever, grupos inteiros deles que já se organizam em livros... E a mochila que tenho levado para Amsterdam? O problema nem é atirarem-na para o lixo, sim deixar eu atrás de mim tanto motivo de preocupação para quem se ocupar dos meus despojos... Arrumar tudo... Aliás, tudo está naturalmente onde poderia estar, não há assim tanto espaço nem móvel na casa... Se houvesse estantes, os livros escusavam de andar às voltas em cima da cama... Alguém vai deitar mãos à cabeça ao ver livros e papéis na cozinha, na casa-de-banho...
Morrer traz incómodos aos vivos, bem queria evitá-los. E tenho evitado, na verdade: além dos livros, nada mais possuo, fui-me libertando a pouco e pouco do supérfluo. Só os livros são essenciais. Não devíamos possuir bens, para podermos partir sem carga... A carga dessa carga, preciso de esvaziar as gavetas, deitar fora papéis que só servirão para causar perplexidade a quem os ler... Mas, meu Deus, morrer aqui, a caminho de Silves, essa cidade onde viveram tão belos poetas árabes, e que me garantem inebriar com o perfume das flores de laranjeira? Não posso morrer aqui, ainda vamos no Alentejo, segundo o médico sentado à minha frente. Percebi isso, fala-se em inglês, a carruagem vai cheia de turistas a caminho da praia.
Deixa ver o que tenho na carteira... Passaporte europeu, com local de nascimento, na Holanda... Nem morada nem telefone... Uns cartões de visita, este é do Juan Molinos, escritor da Andaluzia... Passei estes últimos quinze dias em casa dele... Se morro aqui, vai ser um problema para os portugueses contactarem os meus familiares na Holanda... Pegam no telemóvel e desatam a ligar para todos os contactos, e quem, na lista, responderá numa língua minimamente acessível como o inglês?
Ai, sinto-me mesmo mal, uma fraqueza... Suores frios... Nada na carteira que permita a alguém avisar a minha família... Só por aqui vejo uns papéis com o endereço do Juan Molinos... E que família? A Sylvia? Não somos casados, ela é só a mãe do meu filho. Foi um acidente, como posso eu garantir a criação do Conrad? Adoro o Conrad, é a minha cara, mas sou um... Sou o quê? Como é que a sociedade me classifica? Um irresponsável? Um desempregado crónico? Um vagabundo? Um marginal? Um mendigo? Aceita a sociedade que eu seja um poeta?
Tenho comido tão pouco, custa-me sobrecarregar a Sylvia. Vamos falar com a claridade absoluta dos teus poemas, Clovis: passas fome. Por isso o médico te diagnosticou anemia. Andas mais magro que um cão vadio, Clovis, a pele amarelada, e cheiro a não sei quê adocicado, Clovis. Sinto-me mal disposto... Precisava de levar alguma comida à boca, mas fico sem dinheiro se vou ao bar, e a carruagem do bar é das primeiras, não a conseguirei alcançar...
Oiço zumbidos dentro dos ouvidos, as pessoas perguntaram alguma coisa mas não compreendi... Está tanto calor e custa-me respirar, vou à casa-de-banho...
Não convém fechar a porta, era um berbicacho terem de a arrombar se morresse trancado aqui dentro... Que ninguém morre de anemia, mas lá que me sinto fraco, sinto... E cheio de calor, vou ao menos tirar as peúgas... O comboio anda aos tombos, roda à volta de mim numa zoeira... Quem serão estas pessoas que me amparam e me levam quase no ar para fora do WC? Alguém esperava que eu saísse, uma senhora de rosto redondo e olhos pequenos. Sorriu, não percebeu que sou um poeta de palavras fortes mas de pernas fracas...
É o casal de médicos que ia comigo na carruagem... Mandaram parar o comboio por minha causa? Oh, não esperava que me atribuíssem assim tanta importância... A mão de alguém mexeu-me nos bolsos, tiraram-me a carteira... Não, não foi para me roubarem, o médico folheia os meus papéis e um homem fardado escreve numa agenda...
- Do you live in Spain? - pergunta o médico. E mede-me as pulsações pelo relógio, enquanto eu olho para o céu quase branco, tanta é a luz, e tanta a efervescência no meu sangue... Estou deitado no banco de pedra daquela estação de nome tão maravilhoso, que nome era? Fixei, eu fixei o nome da estação, apesar de a língua ter um sabor tão estranho: Santa Clara Sabóia... Santa... O céu é um sorvedouro branco, sinto-me atraído por ele, e mergulho, mergulho num torvelinho de cintilações prateadas... Reajo, tenho de me levantar e levanto-me, o médico é uma projecção de sombra à minha frente, não lhe distingo as feições, só a voz distante, de enxame de abelhas:
- Do you live in Spain? - quero responder, sorrio antes da resposta, erguido a mais do que a altura dele, olho-o de cima, sem sobranceria mas com o orgulho dos bons... Sou um grande poeta, todos o sabem... Não queria causar aborrecimentos a ninguém, mas é verdade que o comboio está parado por minha causa, há tanto tempo, tanto tempo... Mais de vinte minutos, comenta alguém... Percebo que chamaram uma ambulância, o médico continua a falar comigo, vai chegar a ambulância, promete, os passageiros do comboio sairam para o bosque, não posso dizer que sairam para a rua, não é verdade? Isto é um lugar de fronteira, nem cidade nem campo, pronto, sairam para a poeira, outros espreitam por cima dos ombros de quem está à frente para me observarem e então, numa fração de corisco, uma faísca atravessa-me e sinto-me desabar no chão, estou morto, o médico ajoelha, põe-me a mão sobre o coração e com a outra faz força, fica ali tanto tempo a dar massagens ao coração, coitado, deve estar cansado, olho de cima para aquela cena, um grupo de pessoas chocadas, há uma, dentro do comboio, que solta gargalhadas, decerto em reação nervosa, está roxo, que quer isso dizer?, que não vale a pena, é só por descargo de consciência que o médico insiste na massagem cardíaca, o homem está morto há mais de três minutos, oiço, lá em cima, no céu de almofada de penas, lavado, claro, tão nítido, e depois a música alarmada da ambulância que chega, e há-de levar-me, só incómodos para os portugueses, desculpe, sorry, sorry, peço perdão por ter morrido, só queria participar no Encontro de Poesia, não era desejo meu causar-vos tanto atraso e tanta perturbação...
Maria Estela Guedes ,in Revista Triplov e Poema Plural