26 maio, 2010

custa muito ver o pai chorar

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custa muito ver chorar o pai
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quando chegavas das comissões /
— dizíamos: das colónias, do ultramar; dizemos: da Guerra Colonial — /
quando chegavas/
antes, vinha sempre um telegrama/
branco /
a confirmar a chegada/
do barco e/
a informar sobre o cais/ onde desembarcavas/
e / antes/ também vinha sempre um aerograma/
(amarelinho ou verdinho ou azul turquesa-clarinho) /
onde nos anunciavas que estavas bem (há 15 dias! que era o tempo da viagem do barco)/
e que acabavas a comissão /
no dia x/
pelo que já não nos enviavas mais aerogramas.
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esses dias — os do último aerograma — iniciavam os rituais de renascimento de todas nós/
e deitávamos mãos à limpeza e embelezamento/
da casa.
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cada uma de nós/
— cada uma com diferentes mãos de diferentes habilidades e tamanhos —/
esfregava os tacos com palha-de-aço/
os tachos e pratos amarelos de família (os de estanho não me lembro agora como os políamos) com esfregão de esparto e areia /
ou, mais tarde, /
com o produto maravilhoso, a sularine, que vinha numa garrafinha de lata dourada onde sobressaía um coração verde e vermelho, patriótico pois, atravessado por uma seta dourada./
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a sularine poupava-nos /
algumas dores /
de músculos (nunca assumidas):/
'o pai vai regressar! o pai vai regressar!' /
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cada uma de nós/
com diferentes tamanhos de mãos — com as nossas 6 mãos — /
 tirávamos os cortinados das sanefas/
lavávamos, /
à mão, no tanque, /
os cortinados/
encerávamos, à mão, as sanefas/
e o chão /
entretanto já limpo.
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cada uma de nós/
com as nossas 6 milagrosas mãos/
tirávamos a loiça toda dos armários/
e lavávamo-la/
à mão/
no lava-loiça de uma torneira/
só /
de água fria. /
antes, as panelas e as cafeteiras de alumínio, /
as maiores, /
eram cheias de água e /
postas ao lume/
até que fervesse/
para termos água quente que se misturava, no lava-loiça, /
à água fria.
aliás, nem era mesmo no lava-loiça:/
havia 3 alguidares: /
um, para "fazer a água" da lavagem, com detergente com grãos azuis que desciam de uma embalagem de cartão, cada vez mais húmida, com o uso/
o outro, para as águas de enxaguar e o outro/
era onde se ia pondo a louçada a escorrer, pois o escorredor depressa ficava a abarrotar.
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com as nossa saudosas 6 mãos/
limpávamos com panos de louça/
que se sucediam/
vencidos pelo encharcanço/
de tanta louça húmida que havia que limpar e secar até brilhar/
e depressa/
para, por sua vez, caber outra tanta — lavada /
e enxaguada em várias águas —/
a escorrer.
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os alguidares tinham começado por ser barro/
de vários tamanhos/
em tons de castanho e/
com flores alentejanas pintadas. /
depois, à medida que o verniz /
saltava ou que se rachavam e partiam, passaram a ser /
de zinco /
cinzentos /
tristes. /
mas os mais modernos/
eram os mais garridos; de plástico vermelho/ creio.
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quando chegavas da comissão/
as nossas 6 mãos obedientes ao estado novo /
aos medos e à cartilha maternal /
levantavam e sacudiam tapetes/
colchas/
passadeiras carpetes e /
todo o tipo de abafos. /
bem que as batíamos, às carpetes!/
ou, se dava, bem que os lavávamos. /
havia uns rolinhos de madeira /
com uns grampozitos nas extremidades/
próprios/ para segurar as passadeiras /
na escada da entrada. também esses pauzinhos eram encerados/
pelas nossas 6 carentes mãos.
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penso, agora, /
como a relação com estes elementos — água, lume, madeira e pele — /
nos ajudaria na espera.
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quando regressavas vivo de uma comissão/
cozinhavam-se pratos /
e sobremesas /
apropriados para o teu regresso/
(em casa de remediados/
havia que planear bem os gastos)./
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tenho a certeza de que nos trazias /
prendinhas/
a todas /
mas, agora, /
desculpa lá! — /
não me recordo de quais. /
porque o teu abraço a nós as três/
e às nossas 6 mãos mais crescidas /
era tudo o que queríamos/
e não esqueço.
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quando chegavas da comissão. /
de uma vez, recordo: /
era época de Natal /
fomos, só nós os dois/
ao musgo/
para o presépio. /
nesse ano/ ainda não andaria na escola./
nesse ano/
deste-me a tua mão /
forte/
e ajudaste-me a subir ladeirinhas caminhitos e passagens /
com lama e folhagem/
que nos meus medos /
de gaiata eram precipícios /
tenebrosos./
mas ali ia a tua mão/
forte e meiga/
a guiar-me e a amparar-me. /
voltámos dois perfeitos cúmplices /
com os sapatos encharcados/
os pés molhados ( 'óh, óh! então nã é que ainda se constipam? para quê tanto musgo?' ) /
mas com uma escolha e um carregamento de musgo /
invejáveis para qualquer um./
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naquela época./
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um homem também chora — digo-o frequentemente./
 e sinto-o/
revoltada e indignada contra essa mentira/
deslavada/
da mulher sensível-burra/
e do homem só razão-bruta.
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nesse ano, /
pai, /
deste-me a tua mão /
forte e terna.
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noutras vezes, pai.
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sempre que saía contigo, pai:/
dávas-me a tua mão/
forte e terna/
e ajudávas-me. /
ensinavas-me a travessia de ruas, multidão, trânsito e vida.
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percebe-se, agora, porque é que
custa muito
ver
o nosso pai
a chorar?
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maria toscano.
Coimbra, Galerias santa Clara
23 Maio/2010.
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